por Monique Mosca Gonçalves* para Observatório de Justiça e Conservação
Temos assistido a uma constante evolução do Direito Animal nos últimos anos, com destaque para iniciativas da legislação estadual e municipal e manifestações jurisprudenciais inovadoras, a exemplo da recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que, de forma inédita, reconheceu a capacidade de ser parte dos animais[1].
Como regra, essa evolução é marcada por uma escancarada preferência protetiva aos animais domésticos de companhia, a exemplo da Lei Sansão, que alterou a Lei 9.605/98 – Lei dos Crimes Ambientais, para incluir uma figura qualificada ao crime de maus-tratos a animais, aumentando a pena de detenção de três meses a um ano, para até cinco anos de prisão, quando a vítima do crime for cão ou gato.
Essa tendência não se alinha com o fundamento maior do Direito Animal, que é a senciência. Se o reconhecimento da dignidade animal se ancora no pressuposto de que os animais são seres sencientes, a princípio, todas as espécies que contam com a capacidade de senciência[2] deveriam merecer igual respeito e consideração. Essa lógica de igualdade se extrai também da base constitucional do ordenamento animalista, uma vez que, ao vedar a crueldade contra os animais, a Constituição Federal (Artigo 225, §1º, VII), reconheceu o interesse dos seres sencientes – de todos eles – contra o sofrimento.
A razão desta preferência protetiva a cães e gatos é óbvia: a intensificação dos laços de afeto provocada pela proximidade da convivência doméstica, o que provocou uma forte sensibilização pública para a proteção dessas espécies – e tão somente delas -, contra atos de violência e maus-tratos. Daí surgiu o conceito moderno de especismo afetivo, enquanto crítica à hipocrisia por trás reconhecimento jurídico da dignidade animal centrado apenas nos animais domésticos, revelando que o escopo de proteção decorre muito mais de sentimentos humanos do que de uma genuína evolução civilizacional. O ordenamento animalista nada mais reflete do que a esquizofrenia moral predominante na sociedade contemporânea, que trata cães e gatos domésticos como membros da família, dispensando atenção e consideração semelhantes àquelas dispensadas aos filhos menores, enquanto demonstra ignorância e complacência com as inúmeras práticas cruéis da indústria de produção animal, revelando completa despreocupação com o tratamento dispensado a muitas espécies de animais que, de acordo com o atual conhecimento científico, são dotadas de até maior grau de senciência que cães e gatos, a exemplo dos porcos e dos grandes primatas.
Três velocidades do direito animal
O Direito Animal ganha então a seguinte conformação, estruturado em três velocidades, de acordo com a espécie do animal e a eventual existência de conflito com interesse humano:
- Animais domésticos de companhia: impulsionado pela convivência doméstica e a maior proximidade afetiva, bem como a menor interesse econômico por trás da exploração, cães e gatos tornaram-se as espécies com maior proteção jurídica. A jurisprudência evoluiu consistentemente no sentido do reconhecimento da família multiespécie, muitas vezes se valendo de analogia com a posição dos filhos menores em demandas de divórcio, para reconhecer o interesse do próprio animal na disputa. Paralelamente, a legislação estadual e municipal foi emergindo para afirmar o conceito de guarda responsável, delineando os deveres do guardião em prol do bem-estar animal. A relação que outrora era marcada pelo regime de propriedade passa a se configurar como dever de cuidado e proteção, com absoluta predominância da relação de afeto sobre os poderes inerentes à propriedade.
- Animais silvestres: a autossuficiência, a função ecológica do animal silvestre e o seu interesse fundamental de viver livre no habitat natural são os aspectos que conformam o regime jurídico, dando predominância ao Direito Ambiental nesta área, com base em um princípio geral de não intervenção. A função primordial do Direito Animal neste âmbito é provocar o debate sobre a legitimidade de diversas formas de exploração de animais silvestres diante do novo paradigma ético, a exemplo da exploração em circos, do modelo retrógrado de exposição em zoológicos, do tráfico de animais silvestres como pets, da caça, etc.
- Animais de exploração econômica: sob o influxo do conflito de interesses de diversas ordens (ciência, cultura, alimentação, etc.), o Direito Animal ganha um espaço ainda muito restrito, limitado ao conceito de sofrimento desnecessário que é oriundo das primeiras teorias de bem-estar animal, em total dissonância ao princípio da dignidade animal. Em algumas áreas, a exemplo de práticas ditas culturais e esportivas e a experimentação animal, até que se notou alguma evolução, como a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIN da vaquejada (ADIN 4983/CE) e a progressiva proibição de testes em animais para a produção de cosméticos em leis estaduais. Contudo, na área da produção animal, verifica-se um verdadeiro blindspot do sistema jurídico animalista, com a inexistência de qualquer manifestação legislativa no sentido da proteção dessa classe de animais, que permanecem invisibilizados, em razão da absoluta predominância do interesse econômico. Nem sequer se vislumbra qualquer esforço no sentido da criação de uma política de produção e consumo eticamente sustentáveis, no sentido de criação de instrumentos econômicos para incentivar a produção e a circulação de produtos que garantam padrões mínimos de bem-estar animal.
Contradições
Na prática, então, o que se vê é um ordenamento jurídico de base especista. De um lado, cães e gatos contam com forte proteção legal, com obrigações aos respectivos guardiões e reconhecimento da responsabilidade do Poder Público em relação à guarda e aos cuidados daqueles que forem vítimas de maus-tratos e dos errantes. Do ponto de vista criminal, a prática de maus-tratos contra estas espécies prevê rigorosa pena de reclusão de até cinco anos.
Do lado oposto, bovinos, suínos e aves são submetidos a toda forma de crueldade que é inerente aos modelos de criação industrial intensiva. São criados em gaiolas minúsculas, submetidos a procedimentos extremamente dolorosos sem qualquer insensibilização, privados de todo e qualquer comportamento natural da espécie e mesmo da possibilidade de desenvolver qualquer relação de afeto com outros animais, como se fossem verdadeiras máquinas de produção. O art. 32, caput, da Lei 9.605/98 prevê pena de detenção, de três meses a um ano para quem praticar maus-tratos contra essas espécies, mas, na prática, esse tipo de crime sequer chega a merecer investigação, por absoluta falta de fiscalização.
Foto de investigação sobre abate de vacas gestantes feita pela ONG Animal Equality. Imagem mostra bezerros se debatendo vivos.
Considerando que o Direito Animal é um ramo novo, ainda em fase de estruturação, a questão que fica é saber se a nossa esquizofrenia moral dará o tom da evolução nos próximos anos, de forma a se configurar um sistema de proteção direcionado exclusivamente a cães e gatos, ou se, em algum momento, o pressuposto da senciência será verdadeiramente considerado para lançar luz ao sofrimento de milhões de animais explorados diariamente pelo poderoso agronegócio brasileiro.
Instrumentos jurídicos para tanto não faltam. A informação e a educação animalista são dois princípios fundamentais do Direito Animal e exigem o conhecimento público sobre os diversos modelos de criação e exploração dos animais, bem como medidas para a conscientização da população sobre a relevância do sofrimento dessas espécies. O próprio Direito do Consumidor demanda que os consumidores tenham toda a informação prévia necessária sobre o grau de bem-estar animal envolto em cada produto disponível no mercado e a Lei nº 13.186/15, que institui a Política de Educação para o Consumo Sustentável, traz importantes instrumentos para convocar o consumidor a exercer o seu primordial papel na melhoria das condições de tratamento dos animais explorados.
A ver …
*Monique Mosca Gonçalves é Promotora de Justiça (MG), Mestre em Ciências Jurídico-Ambientais pela Universidade de Lisboa, professora e autora do livro Dano Animal (2020). O artigo foi escrito a pedido do Observatório de Justiça e Conservação.
[1] TJPR. 7ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 0059204-56.2020.8.16.0000, acórdão de 27 de setembro de 2021.
[2] O grande paradigma científico é a aclamada Declaração de Cambridge sobre a consciência animal, publicada em evento da Universidade de Cambridge em 07 de julho de 2012, que afirma textualmente a capacidade de senciência de todos os mamíferos e aves, bem como dos polvos. Veja o texto no blog da Coordenadoria de Defesa dos Animais – CEDA do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Disponível em: http://defesadafauna.blog.br/wp-content/uploads/2018/04/Declaracao-sobre-a-Consciencia-de-Cambridge.pdf Acesso em 23 de nov. de 2021.
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