Um meio ambiente cada vez mais encurralado. A fauna e a flora alocados em ambientes cada vez mais restritos e desequilibrados. A onda expansiva dos desmatamentos e a redução das áreas naturais colocam a saúde dos seres humanos em xeque. A recente pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19), é o mais novo exemplo dos reflexos dos danos ambientais provocados pelo ser humano.
Uma biodiversidade fragilizada e com áreas reduzidas ano após ano provoca o alastramento de doenças que, até então, não eram vistas e nem conhecidas pela humanidade. A intensificação dos efeitos do aquecimento global, por exemplo, faz com que os mosquitos transmissores de dengue e zika consigam sobreviver em novos ambientes. Afinal, ambientes mais quentes permitem a migração desses agentes para localidades onde, até então, o clima era mais hostil à sua propagação e disseminação.
Além disso, a destruição da natureza possibilita o contato mais intenso entre seres humanos e animais silvestres. “A falta de ambientes naturais e o desequilíbrio ambiental fazem com que haja muito mais chance de contatos diretos entre os vírus que estão nesses animais – e estão equilibrados, sem causar dano algum a eles – mas que acabam em contato com seres humanos, gerando problemas e doenças bastante graves”, explica o diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), Clóvis Borges.
Estima-se que 65% das doenças que surgiram nos últimos 40 anos sejam zoonoses, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Animais silvestres, seja pela prática da caça, comércio ou perda de área natural, entraram em contato com o ser humano e passaram doenças que, até então, eram desconhecidas e estavam alocadas apenas nas florestas, como ebola, zika e AIDS, por exemplo.
Esse foi, também, o ponto de partida do novo coronavírus, causador da doença Covid-19. Esse vírus está há tempos no meio ambiente, provavelmente alojado em morcegos que vivem em seu meio natural, segundo pesquisas indicam até o momento. Mas com a crescente urbanização e a invasão humana das áreas naturais, o vírus quebrou seu ciclo natural, alcançando outros seres – como os humanos.
Uma das hipóteses para que o coronavírus tenha alcançado as pessoas é de que, em algum lugar da China, um morcego tenha deixado para trás um rastro de coronavírus em seus excrementos. Um animal silvestre, possivelmente um pangolim à procura de insetos para comer, pode ter tido contato com esses excrementos. Um desses animais, após capturado, entrou em contato com seres humanos e, de alguma forma, infectou alguém. Este indivíduo, por sua vez, transmitiu o vírus a seus colegas no mercado chinês, onde outros animais silvestres também são vendidos.
Existem, também, outras suspeitas e possibilidades. Mas todas estão ligadas ao ser humano como protagonista da invasão de territórios silvestres. Outra, que também é considerada bem possível, é de que a transmissão tenha ocorrido para um indivíduo diretamente por um morcego. Os únicos mamíferos que têm a capacidade de voar podem ser infectados por vários tipos de coronavírus no mundo todo – incluindo os da cepa que provocam a Covid-19. De acordo com as investigações até o momento, o contato silvestre deve mesmo ter sido o principal vetor de transmissão. As pessoas podem ter tido contato com a saliva e as fezes dos morcegos. A caça desses animais na China e a introdução deles em mercados que vendem animais silvestres podem ter contribuído para a expansão da doença.
A solução para evitar problemas dessa ordem, que hoje afligem o mundo, é respeitar mais o habitat de todos os animais. A história mostra que pandemias originárias de zoonoses são resultado das intervenções do ser humano no meio ambiente. No anseio para expandir seu território, a humanidade invade o território de infinitas espécies, trazendo problemas de lá. Problemas para os quais uma pessoa, sequer, tem imunidade. “O ser humano se acostumou com a vida artificial a custo da natureza. Isso traz reações, como o surgimento de novas doenças vindas de elementos que já existem na natureza e que entram em contato com as pessoas”, completa Clóvis.
A falta de ambientes naturais e o desequilíbrio ambiental fazem com que haja muito mais chance de contatos diretos entre os vírus que estão nesses animais – e estão equilibrados, sem causar dano algum a eles – mas que acabam tendo contato com seres humanos, gerando problemas e doenças bastante graves
Doenças X Meio Ambiente
Exemplos na história mundial não faltam. A epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), entre 2002 e 2003, na Ásia, teve como origem o consumo dos mamíferos civetas que estavam, provavelmente, infectados por causa dos morcegos. Em 2012, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, em inglês) passou de dromedários para humanos.
A doença pelo vírus ebola, cujo morcego também é o reservatório mais provável, é outro exemplo. Quatro dos cinco subtipos ocorrem em hospedeiro animal nativo da África. Acredita-se que o vírus foi transmitido para seres humanos a partir de contato com sangue, órgãos ou fluidos corporais de animais infectados, como chimpanzés, gorilas, morcegos-gigantes, antílopes e porcos-espinhos. A epidemia entre 2013 e 2016 em solo africano ceifou a vida de mais de 11 mil pessoas.
Esses exemplos alertam para o fato de que os humanos e a natureza fazem parte de um sistema completamente interconectado. Existe uma variedade enorme de vírus na natureza que estão inertes. A partir do momento que as pessoas invadem o meio ambiente e provocam o desmatamento, esses vírus adquirem maior potencial de atingir a espécie humana.
Um relatório chamado ‘Fronteiras 2016’ sobre questões emergentes de preocupação ambiental elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente mostra que esses tipos de zoonoses ameaçam o desenvolvimento econômico, o bem-estar animal e humano e a integridade do ecossistema.
Nos últimos anos, várias doenças zoonóticas ameaçaram causar grandes pandemias, como o surto da gripe aviária, entre 2003 e 2004, e o Zika Vírus, entre 2015 e
monitoradas de perto.
A gripe aviária, vale ressaltar, tem ligação direta com a destruição da natureza. Devido a variações climáticas, devastação de habitats e expansão de cultivos ocorreu uma mudança no padrão de migração das aves silvestres. Dessa forma, os patos selvagens – reservatórios naturais do vírus – foram até granjas e passaram o vírus para aves domesticadas, que transmitiram para os seres humanos.
Para impedir o surgimento de zoonoses que marcam a história da humanidade, é fundamental, conforme aponta as Nações Unidas, reduzir a fragmentação de habitats, inibir o comércio ilegal de animais silvestres, controlar a poluição, e, consequentemente, mitigar a intensificação dos efeitos das mudanças climáticas.
Pandemias que entraram para a História
Em Milão e em Nuremberg não foram permitidas que pessoas entrassem ou saíssem da cidade. Isolaram os doentes. Fizeram o correto. Procuraram erradicar os locais onde roedores poderiam estar. O número de pessoas mortas na época nessas cidades foi bem menor em relação ao restante dos países
Peste Negra/Peste Bubônica
A maior pandemia registrada nos últimos anos foi a de Peste Negra, que matou entre 50 a 75 milhões de pessoas no mundo, entre 1918 e 1920. A última do século 20 havia sido a gripe de Hong Kong, em 1968, com um milhão de vítimas fatais. O estrago causado por essa forma do vírus Influenza só fica atrás da mortandade trazida pela Peste Negra, ou Peste Bubônica, no século 14, quando, segundo estimativas, perto de 200 milhões de pessoas perderam a vida.
Transmitida por uma bactéria que vive em roedores selvagens e suas pulgas, a doença originou-se na Ásia Central. “Uma embarcação genoveva saiu de lá e, durante o trajeto, marinheiros adoeceram e a peste foi se propagando pela Europa. As pessoas não foram isoladas e a questão higiênica da Idade Média era diferente da nossa”, explica o professor e historiador Renato Mocellin.
Naquela época, não havia nenhum tipo de saneamento básico. As pessoas jogavam as próprias fezes no meio da rua. O cenário insalubre foi perfeito para que ratos, pulgas e bactérias tomassem conta das cidades. As pessoas, apegadas no teocentrismo, acreditaram que aquilo representava um castigo de Deus. Seria preciso aplacar a ira divina, fazendo procissões e missas. Resultado: os infectados transmitiram a doença para mais pessoas e a Peste se expandiu de forma vertiginosa. “Em Milão e em Nuremberg não foram permitidas que pessoas entrassem ou saíssem da cidade. Isolaram os doentes. Fizeram o correto. Procuraram erradicar os locais onde roedores poderiam estar. O número de pessoas mortas na época nessas cidades foi bem menor em relação ao restante dos países”, conta Mocellin.
Gripe Espanhola
Já a segunda maior epidemia em número de mortos da história da humanidade – a gripe espanhola – teve como origem um vírus que estava abrigado em aves e pode ter pulado diretamente desses animais para o ser humano. As numerosas tropas mobilizadas por toda a Europa desde 1914, período que se iniciou a 1ª Guerra Mundial, contribuiu para que doença se alastrasse mundo afora. Acredita-se que o vírus passou por mutações que permitiram infectar as vias áreas superiores dos seres humanos.
A gripe espanhola assolou o mundo e levou esse nome porque a Espanha era um país neutro durante a guerra. Por lá, circulavam pessoas de maneira intensa. “A Espanha foi duramente atingida, com mais de oito milhões de espanhóis enfermos. Devido a subnutrição que imperava nos países em guerra, o grau de letalidade foi elevado”, relata Mocellin.
A doença chegou ao Brasil por meio de uma embarcação vinda do Reino Unido que aportou em Recife com pessoas infectadas. Essa mesma embarcação passou pelo litoral da Bahia e depois seguiu para o Rio de Janeiro. “No Brasil tivemos 35 mil mortos. Só em São Paulo, foram seis mil. O governo suspendeu as aulas. Foi o único ano no Brasil que ninguém reprovou”, afirma o historiador. No mundo inteiro, a gripe matou 50 milhões de pessoas.
O Paraná não passou em branco nessa situação. Uma festa de casamento reuniu convidados vindo do Rio de Janeiro para Paranaguá. O vírus veio de carona e atingiu Morretes, Antonina e Curitiba. O prefeito da capital, João Antonio Xavier, mandou fechar cinemas, bares, igrejas e escolas. “Nós tivemos o jornal Diário da Tarde com uma manchete de 14 de outubro de 1918 que dizia que morriam 24 pessoas por dia na capital”, conta Mocellin. Em apenas dois meses morreram 384, entre outubro e dezembro de 1918, em Curitiba.
Cólera e Tifo
Não dá para falar de pandemias e não citar a da cólera. Essa doença teve várias pandemias, mas a primeira foi entre 1817 e 1824, com centenas de milhares de mortos. Conhecida desde a Antiguidade, tem sua contaminação por meio de água poluída e alimentos contaminados. Apesar de não ser caracterizada como pandemia, o tifo atingiu a Europa Oriental e Rússia de forma violenta entre o final da década de 1910 e início da de 1920. Foram mais de três milhões de mortos. Detalhe é que a doença está diretamente associada a baixos níveis socioeconômicos, principalmente, em regiões com precárias condições de saneamento básico, higiene pessoal e ambiental. O tifo é transmitido por uma pulga do rato.
Gripes: pandemias recentes
A última vez que a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia decretado uma pandemia foi em 1968, com a chamada gripe de Hong Kong. Em apenas duas semanas, essa doença infectou 500 mil pessoas. Quarenta anos depois, a chamada ‘gripe suína’, provocada pelo H1N1, fez a entidade decretar a primeira pandemia do século 21 em 2009.
A pandemia de 1968 alcançou os Estados Unidos a partir de soldados que lutavam na Guerra do Vietnã. Na Europa a doença foi diagnosticada em setembro de 1968 e atingiu, no ano seguinte, os países da América do Sul e a África do Sul. Estima-se que até três milhões de pessoas morreram. Ela foi transmitida por aves sobretudo as criadas soltas e sem condições adequadas de higiene.
Ao todo, no século 20 foram registradas três pandemias de influenza: 1918 (a já citada ‘Espanhola’), a de 1957-58 e essa de 1967-68. A pandemia da década de 1950, que deve ter matado entre um e dois milhões de pessoas, desenvolveu-se no norte da China e alastrou-se mundo afora em dez meses, principalmente por terra e mar.
Segundo Ana Freitas Ribeiro, da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, “as epidemias de 1957 (H2N2) e de 1968 (H3N2) foram causadas pela recombinação genética do vírus humano com o aviário”.
Zoonoses no século 21
A primeira pandemia do século 21 também foi provocada por uma zoonose. Em abril de 2009, foi identificado um novo subtipo do vírus influenza H1N1 no México. Era uma variedade inédita surgida em animais e com poder de infectar e matar os humanos. Os vírus influenza A, do qual o subtipo H1N1 identificado em 2009 faz parte, possuem a capacidade de passar por várias mutações e produzir diversas novas cepas ou estirpes, isto é, novos grupos de descendentes com um ancestral em comum.
O ponto de partida para essa doença foram os porcos – daí o nome popular de “gripe suína”. A transmissão se dá pelo contato direto com os animais ou com objetos contaminados e de pessoa para pessoa.
A OMS elevou o status da doença em junho de 2009, depois de contabilizar 36 mil casos em 75 países. No total, 187 países registraram casos. O fim da pandemia foi decretado em agosto de 2010.
Os porcos são hospedeiros ideais para vírus que infectam tanto suínos quanto aves e humanos. Em seu processo de multiplicação, essas variedades de vírus passaram por uma recombinação genética que produziram um novo vírus afetou os humanos. Só no Brasil foram mais de 53 mil casos. Logo após decretar o fim da pandemia, a OMS (Organização Mundial da Saúde) apontou que cerca de 18,5 mil pessoas morreram por causa da gripe suína. Porém, um estudo posterior reviu esse total para 200 mil em todo o mundo.
A pandemia da Aids
Essa pandemia surgiu no início da década de 1980 e continua assombrando a humanidade. A AIDS também nasceu da interação entre homens e a natureza. Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), cientistas identificaram um tipo de chimpanzé na África Ocidental como sendo a fonte de infecção por HIV em humanos. Acredita-se que a versão do vírus que estava nos chimpanzés provavelmente foi transmitida ao homem e se transformou em HIV quando os seres humanos caçavam esses animais e se alimentavam de sua carne, o que levou ao contato com o sangue infectado.
“Estudos mostram que essa transmissão de macacos para humanos pode ter acontecido ainda no século 19. Durante décadas, o vírus se espalhou lentamente pela África e mais tarde por outras partes do mundo”, aponta a Unaids. De acordo com a entidade, desde o início da pandemia, mais de 40 milhões de pessoas devem ter morrido devido aos problemas provocados pelo HIV.
Não existe, porém, um consenso sobre a data das primeiras transmissões. O mais provável é que tenham ocorrido de maneira mais intensa a partir da década de 1930, permanecendo restrita a pequenos grupos da África Central. Entre as décadas de 1960 e 1980 surgiram diversos casos de doenças que ninguém sabia explicar o motivo. A AIDS só foi observada clinicamente pela primeira vez em 1981 com os primeiros casos de deficiências do sistema imunológico, associados a um mesmo agente, na época aida não identificado.
Todavia, entre 1977 e 1978, já haviam sido descobertos e registrados os primeiros casos nos EUA, Haiti e África Central – mas ainda não se sabia a origem da doença. Em 1980, o Brasil também registrou o primeiro caso da então misteriosa doença. Em 1982 se classificou oficialmente a nova síndrome como AIDS. O vírus, que já estava presente no meio desde a década de 30, demorou algumas décadas para se adaptar e se espalhar a ponto de criar uma epidemia.
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