Por Bruna Bronoski
O Governo do Paraná está preocupado com a imagem do estado sobre a gestão das águas. Neste mês, o governador Ratinho Júnior (PSD) participou, como organizador, do XXIII Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas.
No evento, o governo lançou o livro “O Paraná e suas Águas”, com inúmeras ilustrações que evidenciam o potencial hidrográfico do estado, além de suas paisagens verdes naturais.
Entre as várias temáticas que envolvem a água, um anexo do livro chama a atenção dos mais atentos. Com título “As Usinas Hidrelétricas Instaladas no Paraná”, o anexo 1 traz um mapa indicando os trechos dos rios paranaenses com empreendimentos entre Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs), Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Usinas Hidrelétricas (UHE) “instaladas”.
No entanto, nem todo ponto situado no mapa corresponde a um empreendimento de fato instalado, segundo Maristela Moresco Mezzomo, geógrafa e professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
A professora cita alguns exemplos. As centrais hidrelétricas no Rio Goioerê, afluente do rio Piquiri, não existem. Alguns dos pontos do mapa no noroeste do estado são projetos em andamento e outros não foram aprovados.
Outro caso é o Rio Mourão, em Campo Mourão, onde ainda não existem todas as CGHs apontadas no mapa. Algumas são apenas projetos aguardando decisão final.
“Pode ter sido apenas um erro na execução do mapa, mas é muito preocupante porque muitos destes empreendimentos ainda não foram autorizados para serem construídos, e muitos estão em debate, pois envolvem questões sociais e ambientais muito impactantes”, afirma Mezzomo.
O livro organizado pelo governo dá enfoque positivo para o fato de os rios paranaenses estarem repletos de usinas hidrelétricas. Mezzomo faz alguns questionamentos: “Por que publicar um mapa com empreendimentos que ainda não foram aprovados? Isso reflete a vontade do governo? A discussão de construção desses empreendimentos passou pelos comitês de bacias hidrográficas para saber a vontade da população, de outros usuários e dos poderes públicos locais?”
Segundo dados da Aneel do começo deste ano, o Paraná tem 62 centrais hidrelétricas instaladas. Desses empreendimentos, 28 são CGHs, 14 PCHs e 20 são usinas, de maior porte, como a Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Na mensagem de boas-vindas publicada no site do Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas, Ratinho Júnior destaca que o Paraná sedia pela segunda vez consecutiva o evento e que o estado valoriza o debate no setor de empreendimentos nas áreas fluviais.
“A água é um bem essencial à vida. Temos como dever promover uma gestão eficiente e comprometida em conservar esse valioso recurso natural, sendo fundamental o debate participativo, descentralizado e democrático”, diz o governador.
O Observatório de Justiça e Conservação (OJC) se posiciona contra os incentivos governamentais sem medidas às PCHs. “Percebemos uma diferença muito grande entre o discurso, sempre cheio de falas sobre progressos e inovações, e a prática, repleta de falta de transparência e estímulo à tecnologias de geração de energia arcaicas. O Estado não estimula novos modais de geração, como a eólica e a solar”, afirma Giem Guimarães, diretor-executivo do OJC.
Giem lembra que passamos pela maior crise hídrica das últimas décadas e que é preciso garantir independência energética para o futuro. “O governo insiste em beneficiar empresários do setor hidrelétrico. O país é dependente da matriz hídrica de energia, o que vai contra as previsões de mudanças climáticas. Nesse sentido, a política energética do Paraná é totalmente negacionista”.
Atingidos: “processo democrático” não chega nas comunidades
Historicamente, a vontade da população não é algo que os governos estaduais no Brasil tem levado em consideração. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) considera que as audiências e reuniões públicas organizadas para ouvir a população têm “caráter meramente protocolar”, diz Robson Formica, membro da coordenação nacional do movimento.
“Não é fácil saber como andam os empreendimentos em rios no Paraná. O acompanhamento no site do IAT é terrível, os licenciamentos não são atualizados, não há transparência”, comenta.
Formica conta que o padrão de violação de direitos se repete nos processos de licenciamento de centrais hidrelétricas em todo país.
“As pessoas vão para a reunião pública sem saber que ela já vale para o processo de licenciamento. Quando a reunião acontece, as pessoas vão para se informar, tirar dúvidas. Elas não têm acesso aos documentos e as poucas informações técnicas não são acessíveis, ninguém compreende o real impacto da obra. Qualquer pessoa pode discordar do empreendimento, mas a decisão já está tomada”, diz o membro do MAB.
A mesma falta de transparência é notada por moradores que são contrários à construção destas usinas, que exploram a força da água nas cachoeiras do estado.
Integrante do movimento Guardiões da Cachu, em Campo Mourão, Alana Bottega Lima conta que a população atingida pelo projeto de CGH Saltinho (rio Mourão) não concorda com a construção da central hidrelétrica e não teve acesso à documentação de licenciamento.
“A empresa tem as licenças mas elas não estão disponíveis para consulta pública. Ficamos sabendo das licenças por um inquérito civil que foi aberto no Ministério Público. Pelo site do IAT não tem informação nenhuma”.
Lima conta que a CGH não começou a ser construída, mas que a estrada de chão que dá acesso ao ponto de represamento da água já recebeu recapeamento asfáltico para passagem de máquinas.
A comunidade indígena Guarani Tekoha Verá Tupã’i pesca exatamente no ponto onde a água deve ser represada. Alana Lima diz que a lógica de vida da comunidade que ali vive vai acabar com a instalação da usina.
“A comunidade pesca para a própria subsistência onde já existem duas outras hidrelétricas pra cima do rio [PCH Salto Natal e a Usina Mourão]. Estas usinas já diminuíram o volume da água. A forma de convivência com a natureza da comunidade será impactada não só ambientalmente, mas na sua cultura e espiritualidade”.
Considerar o todo, não a parte
No XXIII Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas estiveram ao lado do governador o secretário estadual de Desenvolvimento Sustentável e Turismo, Márcio Nunes, e o presidente do Instituto Água e Terra (IAT), Everton Luiz da Costa e Souza.
Márcio Nunes é natural de Campo Mourão, onde já foi vice-prefeito. Na sua mensagem de boas-vindas do evento, ressaltou “a importância de se ter uma visão sistêmica sobre a gestão da água”.
Uma visão sistêmica, que considere o conjunto dos impactos e não apenas o estudo único de uma só usina, é recomendação do Ministério Público à gestão de Márcio Nunes e Everton Souza para autorizar empreendimentos hidrelétricos.
O Núcleo de Recursos Hídricos do Centro de Apoio Operacional de Proteção ao Meio Ambiente do Ministério Público (CAOP) publicou no último ano as Notas Técnicas 05 e 06, com recomendações.
“Estamos orientando as promotorias e órgãos ambientais para que incluam o impacto global no licenciamento. Não só o impacto local da central hidrelétrica localmente, mas no todo, para a região, considerando a bacia hidrográfica toda”, conta o promotor de Justiça do CAOP, Leandro Assunção.
Enquanto o MP pede mais detalhamento e visão geral do processo de autorização, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentada para extinguir a obrigatoriedade de empreendimentos hidrelétricos passarem por discussão e aprovação na Assembleia Legislativa. A autoria é do deputado estadual Tião Medeiros (PTB).
Segundo o promotor Assunção, os licenciamentos devem seguir uma avaliação ambiental estratégica e integrada. Além disso, certas áreas devem ser totalmente protegidas de tais empreendimentos.
“Estamos trabalhando para que o Paraná estabeleça espaços ambientais protegidos, onde não seja aprovado nenhum tipo de empreendimento. Um deles é o Rio Piquiri, que não possui centrais hidrelétricas. Assim devem permanecer”, afirma Assunção.
A professora Mezzomo, que faz parte do movimento Pró Ivaí Piquiri, menciona que a proteção dos rios Ivaí e Piquiri (tributários do rio Paraná) é essencial para a manutenção de serviços ecossistêmicos na região, como abastecimento de água e alimentos, regulação do clima e da água, lazer e cultura.
“Os rios do Paraná estão virando canteiros de obras e estão deixando de ser livres. Rios existem para ser livres. Obviamente que precisamos gerar energia e isso é indiscutível. Mas chegamos num ponto em que precisamos nos perguntar: quanto queremos conservar e quanto barrar os nossos rios? Quanto de energia produzimos e quanto precisamos ainda produzir?”, questiona Mezzomo.
O que diz o Governo do Paraná
O OJC entrou em contato com o governo do Estado para responder sobre o possível equívoco no mapa citado acima e os questionamentos dos entrevistados na reportagem. Até o momento desta publicação, não tivemos resposta.
Seja o primeiro a comentar