Por Flávia Miranda, coordenadora de pesquisa do Instituto Tamanduá
*O texto é uma reprodução de trechos da entrevista concedida ao Programa Justiça & Conservação
Para elaborar um projeto de conservação precisamos de metas e objetivos ou nos perdemos. O Instituto Tamanduá trabalha com história evolutiva, genética e áreas prioritárias. Nós temos três bases físicas. A primeira é no Delta do Parnaíba, Piauí, porque descobrimos que aquela área e aquele mangue são extremamente importantes por serem uma ponte, entre a Mata Atlântica nordestina e a Amazônia, para várias espécies.
Lá o projeto atua com monitoramentos do tamanduaí (Cyclopes didactylus) e reflorestamento de mangue, com muito envolvimento de moradores e da comunidade pesqueira.
Antigamente era conhecida só uma espécie do tamanduaí. Com o trabalho que desenvolvemos nos últimos anos, descrevemos 6 novas espécies. Além de bem pequeno, ele é um dos mais antigos dos tamanduás. A radiação adaptativa – quando surge uma nova espécie – ocorreu em torno de 33 milhões de anos atrás.
O interessante é que esses animais são exclusivos da América Latina e um dos mamíferos mais antigos que tem placenta. Existem hipóteses que eles são a base dos placentários, então estudar essas espécies de tamanduaí justifica-se não são só porque eles são lindos, mas porque contam uma história evolutiva, da qual também podemos fazer parte.
Para descrever as novas espécies, foram mais de 10 anos de pesquisa, trabalhando e coletando material. Lembro que na Amazônia levamos dois anos só para conseguir capturar o primeiro animal. Eu brinco que a gente olhava e chacoalhava o galho, se não fosse marimbondo, era tamanduaí. Hoje em dia a equipe já o reconhece de longe, pela textura do pelo que é um pouquinho diferente da folha.
Tamanho – O tamanduaí é a menor das espécies de tamanduá do mundo, com cerca de 30 centímetros e vive apenas em árvores. O tamanduá-mirim é o meio-termo quanto ao tamanho e anda tanto no solo quanto nas árvores. O tamanduá-bandeira é o maior deles e tem distribuição bastante ampla no Brasil. Mesmo assim, há pouquíssimo conhecimento sobre a espécie. O trabalho desenvolvido no Delta do Parnaíba monitora e levanta dados dessa espécie no Piauí.
Ao preservar símbolos da fauna, também protegemos outras espécies que estão no mesmo habitat
Na Bahia trabalhamos com a preguiça-de-coleira, espécie ameaçada de extinção e que ocorre só no Brasil. É extremamente importante a preservação dessa espécie-símbolo, animal que só ocorre na Mata Atlântica.
Estamos lançando uma loja física em Ilhéus, onde também fica o laboratório junto à Universidade Federal de Santa Cruz. Lá tenho vários alunos sob orientação de mestrado e doutorado que fazem parte da equipe. É uma base onde recebemos amostras e armazenamos o material para quem quiser estudar ao longo dos anos. Há amostras com mais de vinte anos, catalogadas e congeladas, à disposição para pesquisa.
Focamos em espécies-chaves, ou espécies guarda-chuva porque preservando símbolos da fauna também protegemos outras espécies que estão no mesmo habitat.
Trabalhar em campo com as preguiças é um esforço muito grande, às vezes elas estão em árvores a 40 metros de altura. Precisamos avaliar se é possível capturar, se o galho não é muito fino ou se a árvore não está podre, porque podemos subir e cair. Os mateiros são os nossos parceiros. Eles passam uma fita guia, montam todo o equipamento de rapel para subir, capturar o animal, colocar em um saco de pano e descer.
Fazemos a anestesia e o procedimento todo no chão. Com a coleta de sangue, temos exames de saúde, check up geral e exame genético. O animal recebe um microchip, como se fosse uma identidade para sempre, e rádio-colar para monitorar. O procedimento demora em torno de 40 minutos, então uma injeção reverte a anestesia e a preguiça já volta para a mesma árvore.
A partir daí começa nosso projeto de estudo. É possível ver quais áreas esse animal precisa, em quais árvores se alimenta e quais são as reais ameaças. Tudo vai para o Plano de Ação Nacional do ICMBio e o plano de manejo internacional da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), também responsável pela atualização da Lista Vermelha dos animais ameaçados de extinção.
Órfãos do Fogo: o projeto é lindo, mas a causa é muito triste
No Pantanal trabalhamos diretamente com o tamanduá-bandeira, mas existe também a questão dos incêndios. Em 2019 e 2020 o Pantanal queimou bastante, foi realmente algo com muito impacto. Reabilitamos os órfãos das mães queimadas ou que morreram atropeladas fugindo do fogo. Trabalhamos forte nesse projeto para reintroduzir esses filhotes e dar uma segunda chance a eles.
Nós criamos, no Mato Grosso do Sul, um Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal (GRETAP) com várias instituições unidas para esse trabalho, inclusive o Conselho Regional de Medicina Veterinária. Conseguimos resgatar poucos animais do fogo, porque é algo que realmente devasta tudo. Mas muitos filhotes chegaram até o Centro de Reabilitação de Animais Selvagens de Campo Grande do Imasul, do qual somos parceiros.
Nesse começo trabalhamos com 10 animais para reintrodução na natureza. Para isso, o primeiro passo foi fazer um levantamento genético da população de tamanduá-bandeira no Brasil, depois diminuímos e fizemos uma análise mais detalhada no Pantanal, depois no Pantanal de Mato Grosso do Sul e assim selecionamos determinadas áreas.
Fizemos análises de saúde, que são importantíssimas, e agora os animais estão em fase de reabilitação. Construímos recintos nas áreas selecionadas e alguns dos animais estão lá. Quando eles chegarem aos 20 quilos, vão receber um rádio-colar e vamos monitorá-los por três anos na natureza.
Conservação é feita por várias pessoas, eu brinco que é uma corrida de bastão
O trabalho é infinito, quando um cansa, passa o bastão para o outro. Sou fã número um de todos que trabalham e dedicam seu tempo, porque o instituto tem muita gente contratada, mas também tem muitos voluntários, pessoas que acreditam no projeto de conservação de fauna.
O terceiro setor vem para trabalhar em cima dos gaps que o governo e a sociedade privada não estão conseguindo fazer. A ONG Instituto Tamanduá é de todos nós. Está super aberta para quem quiser ser voluntário, apoiar o projeto, conhecer mais as espécies e as nossas bases. Estamos abertos a visitação.
Sou professora universitária e eu estou aqui por acreditar na causa. Precisamos pensar no coletivo, lembrar que essas espécies existem há 65 milhões de anos e nós chegamos agora, há um milhão de anos. Precisamos dividir espaço e garantir a manutenção do ecossistema em equilíbrio. Se desequilibrar, não sabemos o que pode acontecer.
Flavia Miranda, fundadora e presidente do Instituto de Pesquisa e Conservação de Tamanduás, é médica veterinária, pós graduada em Manejo de Fauna pela Universidade de Tolima (Colômbia) e em Clínica Médica pela Universidade Santo Amaro. Mestre em ecologia pela Universidade de São Paulo-USP. Doutoranda em Zoologia na UFMG. Membro do Grupo de Especialistas em Xenarthros da IUCN. Atua na área de manejo e conservação de animais selvagens. Atuou como pesquisadora colaboradora em projetos em diferentes países da America Latina, Namíbia, África do Sul e Antártica.
Flávia participou do Programa Justiça & Conservação no dia 22 de junho de 2021.
Acesse a entrevista na íntegra – clique aqui
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