Projeto de Lei ameaça patrimônio natural e cultural do Paraná

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Buraco do Padre, na APA da Escarpa Devoniana_UEPG

O Brasil atravessa uma inegável crise política. Os índices de rejeição aos velhos caciques da política são altíssimos e a população está muito sensível a todas as formas de corrupção ou manipulações contrárias ao interesse público. Todavia, em pleno fim de mandato, Governo e deputados do Paraná, de maneira truculenta e antidemocrática, pretendem “passar com seus tratores” sobre o que há de mais sagrado num povo: sua própria história.

O Projeto de Lei 527/2016, que tramita na Assembleia Legislativa do Paraná, propõe a redução de 70% da APA da Escarpa Devoniana, a maior unidade de conservação do Estado, localizada na região dos Campos Gerais. Mas ele não se limita a uma questão meramente regional, como os senhores do agronegócio supõem. Representa um atentado à identidade cultural de milhões de brasileiros, a qual se baseia em história e fitogeografia singulares. Se aprovado, o projeto mutilará uma Unidade de Conservação legalmente estabelecida e abrirá caminho para outras aberrações semelhantes por todo o país. Além de inconstitucional, a proposta vai contra o princípio do não retrocesso e o da precaução do Direito socioambiental. Ambos preveem a obrigação de se evitar danos ambientais irreversíveis.

Além disso, a iniciativa – contra a qual até o momento o governo do Estado não se manifestou – teve início a partir de um ato ilegítimo do presidente do Instituto Ambiental do Paraná (IAP). Ele assinou em nome do Conselho Gestor da APA um pedido para que a Fundação ABC, financiada pelo agronegócio, propusesse a redução da APA. Entretanto, os membros do conselho deixaram claro que não houve nenhuma deliberação nesse sentido.

Embora corretamente denominada de “Devoniana” em virtude do período geológico em que as rochas que sustentam a Escarpa foram formadas –, a APA seria mais bem descrita como “APA dos Campos Gerais”, pois é nela que sobrevivem as últimas porções de Campos Naturais do segundo planalto paranaense. Aliás, uma nova denominação, mais popular e menos científica, tenderia a aproximar a população deste patrimônio histórico e natural. Foram os Campos Gerais, desvalorizados e degradados por décadas de exploração irresponsável, que se buscou proteger quando a área foi criada, em 1992.

 

A importância do “Paraná tradicional” na história do Brasil

A “Escarpa” propriamente dita é apenas a borda leste da APA, que delimita o início do segundo planalto e dos “Campos Gerais”. Esta região faz parte do que os historiadores chamam de “Paraná tradicional”, porque, assim como o litoral e o primeiro planalto, onde fica Curitiba, sua ocupação teve início a partir do século XVII, séculos antes das regiões sudoeste e norte do estado. Os Campos Gerais tiveram grande importância na história nacional, pois lá surgiram os tropeiros que depois se distribuíram pelo Brasil. Foram eles, em grande parte, os responsáveis pela consolidação de muitos limites territoriais, formando, aos poucos, vilarejos por onde pousavam. Vários estudiosos defendem, inclusive, que os primeiros tropeiros do sul do Brasil não foram os gaúchos, mas sim os paranaenses dos Campos de Curitiba e dos Campos Gerais.

Evidente que nossa proximidade com São Paulo e a existência de enormes campos nativos garantiu ao Paraná vantagens no comércio de gado, que já era registrado antes mesmo das históricas marchas saídas de Viamão, no Rio Grande do Sul, em direção à Sorocaba, em São Paulo. O fato de o Paraná fazer parte de São Paulo à época, e o “branqueamento” do sul do país promovido pelo império, pode ter influenciado a falta de reconhecimento acerca da importância histórica dos Campos Gerais. Infelizmente, o desconhecimento sobre este importante trecho da história nacional é grande. Pouco se sabe sobre fatos que influenciaram a vida de todo o país, como a cidade de Curitibanos, por exemplo, hoje em Santa Catarina, dever seu nome aos tropeiros paranaenses que de lá também levavam gado varando os Campos Gerais, até São Paulo, Minas Gerais e alhures.

 

Mais respeito ao patrimônio natural e cultural

É preciso que a sociedade exija dos governantes mais respeito aos nossos patrimônios naturais e histórico-culturais, direitos fundamentais e, portanto, previstos em Lei. Enquanto conceitos como o de “paisagem cultural” são amplamente reconhecidos e valorizados pela Organização Nacional das Nações Unidas (UNESCO), o governo do Paraná demonstra total desinteresse pelo patrimônio histórico. Prova disso é que, recentemente, 17 grandes nomes que integravam o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Cepha) deixaram o grupo para chamar atenção à “equivocada política cultural da atual gestão”, que segundo eles, “coloca o patrimônio natural e histórico do Paraná em perigo”.

O que pretendem lobbies do agronegócio, mineração, silvicultura, energia e seus políticos ao aprovar o projeto de lei que reduziria a APA, é garantir a permissão para transformar Ponta Grossa na “Princesa da Soja” (e não, Princesa dos Campos, como foi apelidada) e os idílicos e históricos Campos Gerais do segundo planalto, em “Pinus Gerais” – tamanho o descontrole dessa espécie exótica. Os senhores dessa iniciativa nefasta, seja por ignorância ou ganância, não enxergam a região como de grande interesse público. Na verdade, lixam-se para a cultura, natureza e história da nossa terra, os políticos brasileiros. “Embolsada a gaita”, eles continuarão usufruindo suas fortunas e fazendo turismo em outros lugares do mundo. Enquanto isso, a população local – que mal consegue subir a serrinha de São Luiz do Purunã e visitar o icônico, porém abandonado, Parque Estadual de Vila Velha – terá de se contentar com rios e cachoeiras secas ou lotadas de metais pesados e agrotóxicos.

Hoje restam menos de 1% de Campos Naturais bem preservados. E parece não interessar aos gestores públicos que na APA existam formações geológicas e arqueológicas únicas no mundo. Ou nascentes de importantes rios, como o Tibagi, que, por mais paradoxal que possa parecer, vai abastecer lá na frente Londrina, a terra natal do governador Beto Richa. A área é importante também na formação do rio Iapó, Pitangui e outros tantos, não apenas pela quantidade de água, mas qualidade do recurso.

Além de tremendamente impopular, o Projeto de Lei pode ser “um tiro no pé” de muitos políticos. A atual gestão estadual passará em breve por um grande plebiscito quanto ao seu legado de oito anos de deseducação histórico-ambiental. Milhares de formadores de opinião, entre professores, artistas, alunos e frequentadores da região, estão atentos ao que se planeja no trinômio “Assembleia Legislativa, Federação da Agricultura do Paraná (FAEP) e escuros corredores do Palácio Iguaçu”.

Levantamentos precisos demonstram que a maioria da região da APA pertence a pouco mais de 250 grandes latifundiários, alguns, inclusive, de famílias cujo remoto passado remete ao genocídio de indígenas. Essa gente, que vem dominando a política paranaense há gerações, quer mais. Sua sede de poder é histórica, mas não tão antiga quanto os milhares de anos necessários à formação natural dos Campos Gerais, cujos últimos remanescentes agonizam e clamam por proteção.

 

Giem Guimarães é empresário, acionista, membro do conselho do Grupo Positivo e diretor-executivo do Observatório de Justiça e Conservação.

Acesse este artigo no Blog do Planeta.

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