Por Sandrah Souza Guimarães
A Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana sofre pressões históricas com aumento do desmatamento de campos, cerrados e florestas para avanço da agricultura e reflorestamento de pinus em larga escala. A mineração é outra ameaça constante à maior unidade de conservação do Paraná, localizada entre o Primeiro e o Segundo Planaltos. Os mesmos arenitos que abrigam uma indescritível beleza cênica, com afloramentos rochosos, cânions, cavernas, além vestígios arqueológicos e pré-históricos, são vistos como minério a ser explorado para a construção civil.
Recentemente o Observatório de Justiça e Conservação denunciou o estrago causado por uma mineradora na divisa dos municípios de Campo Largo e Balsa Nova, a 30 quilômetros de Curitiba. Uma extensa área de Mata Atlântica foi desfigurada, colocando em risco fauna e flora específicas e nativas de uma região de formação rochosa de 400 milhões de anos.
O Ministério Público do Paraná (MP) informou que, há dois anos, recebeu denúncias anônimas contra a Pedreira São Jorge e abriu um Inquérito Civil para apurar o caso.
Acionado pelo MP, o Instituto Água e Terra (IAT) foi ao local e emitiu um auto de infração pela devastação de 7 hectares de vegetação. A 4ª Promotoria de Justiça de Campo Largo instaurou um procedimento criminal sobre o caso.
A Lei 9.605/98 prevê pena de prisão de 1 a 3 anos e/ou multa para quem destrói a Mata Atlântica. Paralelo a isso, MP e a e pedreira negociam um Termo de Ajustamento de Conduta para a recomposição da área.
O empresário Eduardo Sell Dyminski, proprietário da Soliforte, empresa que atua com reciclagem de resíduos de construção civil, faz uma reflexão sobre o histórico da exploração de areia e pedra no Paraná. “A pessoa ou empresa descobre uma jazida, compra uma escavadeira e vai extrair aquele material até esgotar tudo. Depois disso segue para outro ponto. Age como um gafanhoto, chega, extrai e se muda. O interessante é que vão se criando cenários. Por exemplo, a própria Pedreira Paulo Leminski, um espaço tão querido dos curitibanos, foi uma pedreira, fruto de extração de material até ter seus recursos totalmente esgotados. No Umbará, região sul da capital paranaense, há um verdadeiro cenário lunar de extração de areia com áreas severamente exploradas”.
É possível construtoras e consumidores não compactuarem com a exploração predatória?
Toda extração mineral – que está dentro da legalidade – deve atender os critérios e vistoria “in loco” pela equipe técnica do Meio Ambiente. Para atuar com extração e posteriormente comercialização desse mineral a empresa deve obter a Licença Prévia (LP), a Licença de Instalação (LI) e a Licença de Operação (LO).
Consultamos a engenheira civil Giovanna Ferreira Alves, fundadora da Ekogaia Engenharia, empresa do ramo de construção civil que atua com projetos sustentáveis, e a sócia dela, Izadora Soloaga, também engenheira civil.
Ambas explicam que há uma vistoria inicial para liberação dos trabalhos de extração, mas não há comprovação que essas vistorias continuem periodicamente a fim de verificar a legalidade e boas práticas a longo prazo. Não existe uma certificação ou selo sustentável para esses materiais, preocupação essa que existe, por exemplo, para a madeira (Selo FSC).
“Sustentabilidade parte, primeiramente, do bom senso. Atualmente existem certificações que podem gerar um selo sustentável como forma de se estabelecer estratégias e padrões para a criação de edifícios sustentáveis. Essas certificações servem como parâmetros de eficiência e organização a serem seguidos, mas principalmente promovem visibilidade no mercado para essas edificações e para as construtoras e escritórios responsáveis. Falamos nesse caso de certificações como LEED, AQUA-HQE, Selo Casa Azul, entre outros”, diz Giovanna Ferreira Alves.
Para a fundadora da Ekogaia Engenharia, projetos e edificações que possuem selos sustentáveis estão comprovando um certo nível de sustentabilidade. Entretanto, este não é o único modo de conseguir aplicar estratégias sustentáveis em um empreendimento. “Escritórios, construtoras e prestadores de serviço também precisam priorizar o bom senso, qualidade técnica e profissionalismo na hora de escolher fornecedores e materiais utilizados para criação de projetos e execução de obras”.
A engenheira civil Izadora Soloaga lembra também que consumidores podem buscar empresas auditadas pela ISO 14001, norma internacional que propõe requisitos para que uma organização seja capaz de gerenciar impactos ambientais sobre seus produtos, serviços e governança. “Esta é mais uma forma de implementar dispositivos e estratégias eficientes para empresas alcançarem sucesso visando também diminuição de impacto ambiental. Diferente dos Selos sustentáveis para projetos e edificações, a ISO 14001 é uma certificação própria para empresas”.
Apesar de todos esses padrões sustentáveis a serem seguidos não há, segundo as engenheiras, em nenhuma dessas certificações e normas, especificações para a compra de materiais de extração mineral. “Não há incentivo ou pontuação para empresas que comprem areia e pedra de vendedores legalizados e licenciados ambientalmente. Nas notas fiscais de cada material possui apenas a informação da empresa de origem, sendo assim possível localizar e investigar a proveniência, legalidade e qualidade desse material. Entretanto, não há certificação em nível municipal ou federal para esses materiais”, completa Soloaga.
Entrevista – O geólogo e professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Gilson Burigo Guimarães, conversou com o Jornal JusticaEco sobre o crescimento da exploração de areia e arenito, principalmente para a construção civil, na área da Escarpa Devoniana.
JE – Professor, essa situação da mineração na área da Escarpa é uma questão histórica que vem se agravando. Como o senhor avalia esse conflito socioambiental que envolve empresas, comunidades e agressões severas ao meio ambiente?
G – Já tem um período relativamente longo que acompanhamos a situação no contexto da APA da Escarpa Devoniana e temos visto um acréscimo substancial de ameaças à conservação desse riquíssimo patrimônio natural e cultural que existe nessa área extraordinária do estado do Paraná.
Não podemos fechar os olhos ao crescimento da população e suas demandas, porém, não podemos colocar em risco isso que só existe nessa região. Temos um acervo que contempla cavernas, registros arqueológicos, porções únicas conservadas da Mata Atlântica, com formações campestres e áreas significativas da Floresta Ombrófila Mista, e todas as relações entre esses componentes naturais se entrelaçam com a nossa presença atual e com registros de diferentes fases de ocupação histórica e pré-histórica da região. Precisamos atuar para que a nossa sociedade, os nossos filhos, netos e bisnetos ainda possam conviver com esse patrimônio.
JE– Existe uma pressão muito grande para redução da área de proteção para avanço da mineração, uma vez que a Escarpa abriga uma quantidade gigantesca de areia e minérios. Como equilibrar interesses econômicos e a necessidade de conservação?
G – Estamos diante de um enorme desafio e precisamos demonstrar como sociedade que nós temos inteligência, temos responsabilidade para encontrar as melhores soluções.
A areia é o segundo recurso mineral mais extraído no mundo, só perde para a água, e gera uma série de conflitos gravíssimos, afetando economias em diferentes escalas em todo mundo.
Ali existe realmente algo que pode ser do ponto de vista técnico extraído? É claro que existe. Porém precisamos da areia que vem desse lugar ou podemos manter essa área intacta em função dos outros valores que ela possui?
Essa é uma área única. Se for simplesmente convertida em areia, afetaríamos e inviabilizaríamos uma série de outras necessidades que nós temos. Existem diversas nascentes ao longo de toda essa área extensa que vai desde a divisa com São Paulo, lá no município de Sengés, até a região aí do Rio Iguaçu.
Atividades de turismo são muito mais harmônicas e também geram empregos, atraindo toda uma cadeia socioeconômica que deveria estar uma prioridade acima, não apenas com um olhar extrativista da mineração.
Então precisamos fortalecer as nossas estruturas de monitoramento, fiscalização e atuação legal. Quero destacar todo o papel que o Observatório de Justiça e Conservação tem desenvolvido, em parceria com o Ministério Público, na proteção da Escarpa, até que consigamos fortalecer órgãos de fiscalização estadual e federal e assim lidar de uma maneira responsável e não inviabilizar essa região tão especial.
JC– A área de preservação ambiental da Escarpa pode ser considerado um patrimônio mundial único do ponto de vista geológico, biológico e cultural?
G – Exatamente. As pessoas precisam conhecer melhor o que existe na região dos Campos Gerais, junto à Escarpa Devoniana. O conjunto de avifauna é espetacular e nos deixa maravilhados.
A paisagem de campo, durante o período de florada, constrói cenários mágicos e únicos, entre os mais belos do mundo. Temos a nossa referência, como identidade paranaense, que são as Araucárias. Um conjunto com cânions, cachoeiras e cavernas, nesse contraste espetacular entre o Segundo e o Primeiro Planaltos.
Tudo isso muito próximo a grandes centros e que a população precisa aprender a conhecer, até para que possamos fortalecer a estratégia de defesa dessa área para os paranaenses e para todos os brasileiros.
JE – Como enxerga a destruição que as mineradoras têm feito ao longo das décadas, com argumento de desenvolvimento econômico, e outros tipos de exploração que destroem áreas de mata importantíssimas e nascentes, com certa permissividade dos órgãos públicos?
G – Infelizmente olhando para o que tem acontecido ao longo dos últimos anos, percebemos que falhamos como um todo. Os órgãos que nos representam na sociedade podem e devem fazer mais e melhor.
As pressões de grupos pontuais, com interesses imediatistas, muitas vezes têm tido força suficiente para barrar a atuação de corpos técnicos bem formados em nossas instituições públicas. Falta interesse e decisão política para evitar a destruição desse patrimônio.
Passou da hora da retomada dos conselhos de atuação, como o Conselho Gestor da APA da Escarpa Devoniana que há muitos anos nem se reúne, e isso é inadmissível.
Mesmo com tantos problemas denunciados nos últimos anos, a sociedade não consegue encontrar o assento adequado para debater e encontrar as melhores soluções.
Há muitos anos nós não temos a renovação dos corpos técnicos do hoje Instituto Água e Terra (IAT). Não podemos ficar o tempo inteiro trabalhando com denúncias, correndo atrás do prejuízo quando deveríamos estar na fase anterior, de prevenir, para que esses problemas não ocorram. Isso passa por um fortalecimento da nossa estrutura, uma bandeira que deve ser abraçada por todos, só assim vamos garantir, uma convivência harmônica entre nós e o meio que nos cerca.
JE – Alguma recomendação para que consumidores e construtoras não contribuam com mineradoras que agem de forma predatória em relação a Escarpa?
Considerando o perfil das empresas de mineração que atuam no contexto da Escarpa Devoniana, diferentes consumidores fazem uso dos produtos lavrados que são essencialmente ligados à cadeia da construção civil, como pedra brita, areia, além de algum caulim, pedra que tem outras aplicações.
Sem entrar na questão fundamental das fiscalizações mais efetivas, o ideal seria que tanto o consumidor final (quem está construindo, reformando ou comprando um imóvel), como o poder público que necessita destes insumos, cobrassem uma espécie de selo de boas práticas na obtenção do minério.
Prefeituras, Estados e empresas do ramo da construção civil conseguem, sem muita dificuldade, saber de onde vem o produto que utilizam. E aí estaria uma ótima oportunidade de filtrar seus fornecedores, separando quem aplica medidas ambientais responsáveis dos que não seguem esta linha.
Inclusive isso poderia ou deveria ser utilizado como estratégia de promoção e marketing para empresas e governos. Uma vez isso avançando, esse tipo de controle poderia alcançar lojas de materiais de construção, que atendem o pequeno consumidor. A luta é longa… Mas sigamos em frente!
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