O primeiro esforço para a proposição do Projeto de Lei 527/2016, que tramita na Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP-PR) e prevê a mutilação de 70% – ou dois terços – da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana, pode ter sido baseado em uma prática ilegal.
Isso porque o encaminhamento do ofício que pede formalmente à Fundação ABC a realização de estudos para refazer o perímetro da maior unidade de conservação do Paraná não teve o consentimento do Conselho Gestor da APA da Escarpa Devoniana, criado em julho de 2013 para ser um movimento democrático com a finalidade de reunir periodicamente atores de diferentes instituições e discutir atividades que possam ser realizadas na área, conciliando desenvolvimento econômico com proteção da biodiversidade. Nessa configuração, todas as decisões relativas à APA devem ser consentidas pelo grupo.
O que chama atenção nesse aspecto, é que o ofício n° 188/2015, obtido pelo Observatório de Justiça e Conservação (OJC), endereçado em 06 de abril de 2015 ao presidente da Fundação ABC, Andrea Los e assinado pelo presidente do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), Luiz Tarcísio Mossato Pinto diz que “o Grupo Gestor da APA da Escarpa Devoniana aprovou a realização de estudos para refazer o perímetro daquela unidade de conservação”. Participantes do Conselho, entretanto, dizem que em nenhum dos encontros a necessidade foi acordada coletivamente.
Diely Cristina Pereira, doutoranda em geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e representante do Grupo Fauna no Conselho, estranha a situação. “Nunca foi aprovado pelo grupo um estudo que propusesse a redução da unidade. A Fundação ABC também não foi mencionada como possível entidade a fazer essa análise”.
Durante a reunião com gestores ambientais dos municípios por onde passa a APA da Escarpa Devoniana na Assembleia Legislativa do Paraná, organizada dia 27 de julho pelo deputado Rasca Rodrigues (PV), as representantes dos municípios de Lapa e Balsa Nova, Alana Knaut e Jucélia Leal Ferreira, também integrantes do Conselho Gestor, confirmaram a ausência de decisões que levassem o IAP a aprovar e solicitar a realização de estudos para a realização de um novo perímetro à área.
Márcio Ferla, na época representante do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), lembra que o que foi discutido nos encontros era a necessidade de eventuais mínimas correções do perímetro proposto em 1992, quando a APA foi criada, mas nunca a necessidade de uma redução significativa. “Esse esforço de ajustes finos é algo comum em Unidades de Conservação. O ICMBIO tem até um grupo que trabalha nessa tarefa, mas uma coisa é propor ajustes pontuais baseados no decreto de criação da área, a outra é recortá-la desse modo”, diz.
Márcio também diz que em nenhum dos encontros a Fundação ABC foi sugerida como entidade capacitada a realizar a tarefa. Segundo ele, não foram debatidas as condições para uma contratação ocorrer: se haveria licitação, se outras instituições seriam avaliadas e quais os custos que o trabalho teria, por exemplo. “O poder público não pode selecionar qualquer instituição para um esforço como esse a seu bel-prazer”.
O Observatório de Justiça e Conservação teve acesso às atas de todas as reuniões do conselho e em nenhuma delas é reportado que o tema foi deliberado pelo grupo.
As respostas do IAP
Questionada sobre a situação, a assessoria de imprensa do IAP confirmou que o assunto chegou a ser debatido em algumas reuniões, mas que, de fato, nenhuma decisão sobre a necessidade de revisão do perímetro da APA foi tomada pelo grupo.
Também afirmou que não existem diferenças entre os termos “Grupo”, como colocado no ofício, e “Conselho”, mas informou que não havia porta-voz disponível para esclarecer as dúvidas por entrevista e que o presidente do Instituto está viajando.
Por fim, a assessoria explicou que a solicitação à Fundação ABC foi feita pelo IAP por ser o Instituto a “instituição presidente” do Conselho e que o que foi solicitado por meio do ofício foi o “mapeamento” existente, e não um novo estudo. Não é, porém, o que mostra o conteúdo do documento:
O advogado Aristides Athayde, membro da comissão de Direito Ambiental da OAB-PR, chama atenção para outro ponto. No ofício, justifica-se a necessidade de a Fundação ABC “excluir as áreas de produção para o estabelecimento do novo perímetro”.
Para ele, a proposta descaracteriza por completo a finalidade de uma área de Uso Sustentável como a APA da Escarpa Devoniana. “Essa categoria representa a união de áreas ocupadas com áreas de conservação com caracterização natural e por isso, a UC deve funcionar para propiciar e avaliar, buscando sempre melhorias ao meio ambiente, as relações entre o homem e a natureza”, defende.
Polêmicas relacionadas ao Projeto de Lei
São grandes as polêmicas relacionadas ao Projeto de Lei 527/2016 desde que ele começou a tramitar na ALEP, no segundo semestre de 2016. Proposto por deputados da base do Governo do Estado, ele é do interesse do atual governo do Paraná e tem a autoria dos deputados Plauto Miró (DEM), Ademar Traiano (PSDB), Luiz Cláudio Romanelli (PSB) e conta com o apoio de Pedro Lupion (DEM). A proposta prevê que a APA da Escarpa Devoniana seja reduzida para 32% de seu tamanho original, passando de 392 mil hectares para 126 mil hectares.
Além do fato de o envio do ofício não ter sido consentido pelo Conselho Gestor da APA da Escarpa Devoniana, a ausência de um estudo completo capaz de explicar detalhada e qualificadamente todos os pontos considerados pela Fundação ABC para a chegada à proposta do novo perímetro 70% menor, é outra questão que dá margem para dúvidas. Erros grosseiros que foram identificados quando as coordenadas apresentadas pelo memorial descritivo anexo à proposta foram comparadas às imagens apresentadas ao público pelos interessados na aprovação do projeto, como já divulgado pelo OJC, também preocupam, bem como a ausência de informações sobre qual foi a instituição que contratou e pagou pelo estudo da Fundação ABC.
O Ministério Público do Paraná, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Meio Ambiente e de Habitação e Urbanismo (CAOPMAHU), já solicitou mais de uma vez ao IAP e à Fundação ABC o contrato de prestação de serviços, mas, até agora, não teve acesso ao conteúdo.
Um documento do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Paraná (CREA-PR), a que o OJC também teve acesso, revela algum vínculo entre as instituições. Ele não informa, no entanto, os custos para a realização do trabalho que propõe a mutilação da APA:
Sobre a APA da Escarpa Devoniana
A APA da Escarpa Devoniana é uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável criada por um decreto em 1992 para garantir as condições necessárias para a produção agrícola conviver em harmonia a conservação da biodiversidade.
Na região, ainda sobrevivem alguns dos últimos remanescentes de Campos Naturais e Floresta com Araucária do Paraná, dois ecossistemas associados ao bioma Mata Atlântica e em extinção em virtude da expansão ilegal e desordenada de atividades como o plantio de soja, a mineração e o cultivo de espécies exóticas, como o pinus e o eucalipto. Se o Projeto de Lei 527/2016 for aprovado, vai abrir um grave precedente para a fragilização de inúmeras Unidades de Conservação estaduais e federais.
Como já explicaram o Ministério Público do Paraná e a OAB-PR, o projeto de lei é inconstitucional primeiro por ignorar os requisitos técnicos e procedimentos participativos inerentes à alteração de limites de Unidades de Conservação; segundo por representar um retrocesso na proteção ambiental de unidades já formalmente criadas; e terceiro por negar os compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo Brasil com a preservação dos recursos naturais e da biodiversidade, colocando em risco importantes ecossistemas associados ao bioma Mata Atlântica.
Nas bordas da APA, ficam também Unidades de Conservação importantes, como o Parque Estadual de Vila Velha, cujo platô de arenitos – bem como as rochas que sustentam a Escarpa Devoniana – formaram-se há 400 milhões de anos. A redução da APA, portanto, comprometeria não só unidades que estão em seu interior, como o Parque Nacional dos Campos Gerais, criado pelo governo federal em março de 2006, mas outras áreas próximas que precisam ser protegidas.
Valor histórico e cultural
O local também tem um imenso valor histórico e cultural, que não vem sendo considerado pelo Projeto de Lei. Além de concentrar importantes e ainda desconhecidas cavernas, sítios arqueológicos e paleontológicos, pinturas rupestres e abrigar incontáveis formas de vida, a APA foi rota de tropeiros que passaram pela região no século 18.
Graças a eles, as vilas, e mais tarde cidades dos Campos Gerais, foram surgindo. O trajeto foi escolhido pelo grupo, por ser repleto de Campos, que forneciam uma visão mais ampla se um animal se perdesse ou se houvesse ameaça, garantindo uma visão mais privilegiada em relação a um percurso dentro da mata fechada.
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