Na Mata Atlântica encontramos uma formação florestal peculiar, caracterizada pela presença de uma espécie distinta: a Araucaria angustifolia, ou pinheiro-brasileiro. Ela imprime a essa floresta um aspecto próprio. É chamada de Floresta Ombrófila Mista (FOM) porque sua distribuição é condicionada por médias pluviométricas altas. O termo “ombrófilo” vem de “amigo da chuva”. Nela, espécies de regiões tropicais vivem harmonicamente com outras de áreas temperadas. A FOM é considerada uma das mais sensíveis às variações climáticas. Com a predominância de dias mais quentes e secos, motivados pelos efeitos das mudanças climáticas, sua distribuição foi limitada a áreas de maior altitude nas regiões sul e sudeste do Brasil.
Fonte abundante de madeira de boa qualidade, a araucária foi objeto de intensa exploração comercial, figurando como a árvore mais importante na economia madeireira brasileira até meados da década de 1970. Essa importância rapidamente declinou em virtude do esgotamento das reservas naturais. A exploração ocorria sem qualquer preocupação com a sustentabilidade do próprio negócio. Restou, então, a opção da rápida migração das serrarias sulinas para a região amazônica.
O manejo florestal implantado – balizado pela seleção dos melhores indivíduos que fornecem madeira em maior quantidade e melhor qualidade – fez com que parte importante da variabilidade genética da araucária se perdesse com o tempo. No inicio da década de 80, batizaram essa prática de “manejo florestal sustentável”.
O suposto manejo, se realmente fosse sustentável, poderia se tornar uma técnica saudável. A realidade, no entanto, prova que os resultados são outros. Não só na Floresta Ombrófila Mista, mas também no sudeste asiático, no sul da Bahia e na Amazônia, o que se observa é algo muito similar ao cenário do início do século XX. Naquela época, o manejo era feito apenas para acúmulo rápido de capital, com posterior abandono da área ou implantação de outros usos da terra. Estudos recentes mostram que nas áreas com planos de manejo autorizados a obediência às regras de manejo é exceção, o que resulta na geração de impactos pouco distintos daqueles observados onde ocorre a exploração madeireira irregular.
Mesmo com o sinal vermelho já anunciado há décadas, com o aniquilamento de grande parte de sua área de distribuição original, a FOM, ou o pouco que dela restou, ainda alimenta a cobiça de madeireiros e é ameaçada pela inconsistência das políticas de conservação ambiental do país, absurdamente fragilizadas pela recorrente inobservância do principio da legalidade por parte da administração pública.
A tentativa de justificar o injustificável produz argumentos que, de forma tragicômica, subvertem a mais elementar lógica, como, por exemplo, afirmar que somente a continuidade dessa exploração madeireira seria capaz de garantir a sobrevivência da espécie. Assustador é constatar que alguns técnicos e membros da academia reproduzem essa sandice.
Necessário destacar que a Araucaria angustifolia é reconhecida pelo estado brasileiro como espécie ameaçada de extinção desde 1992 e que a prática do manejo florestal já alimentou debates em todos os níveis, não se limitando aqui tão somente a uma opinião pessoal.
O Poder Judiciário, mesmo antes do advento da Lei da Mata Atlântica, já se manifestou pela insustentabilidade do modelo. Em resposta à Ação Civil Pública promovida por entidades ambientalistas em novembro de 2000, a Justiça Federal de Santa Catarina, determinou ao IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) que suspendesse a concessão de autorizações para a exploração de espécies ameaçadas de extinção no domínio da Mata Atlântica.
Na ocasião, foram anexados laudos técnicos, pareceres e estudos que comprovavam a assertiva de que o instituto vinha autorizando a exploração econômica de espécies ameaçadas de extinção. Somente no estado de Santa Catarina, entre os anos de 1997 e 1999, foram autorizados cortes de cerca de 60 mil araucárias, o que corresponde a mais de 233 mil metros cúbicos de madeira proveniente de espécie que o próprio IBAMA reconhecia como ameaçada.
A ação civil pública pedia, ainda, que o órgão fosse obrigado a não autorizar a exploração ou o corte, sob qualquer forma, na área de abrangência do domínio da Mata Atlântica, até que fossem elaborados e aprovados estudos científicos que comprovassem a viabilidade ecológica, genética e econômica da exploração.
A decisão judicial e a determinação do CONAMA, no entanto, não inviabilizaram a prática do manejo florestal: apenas exigiram o básico, ou seja, que fossem apresentados critérios técnicos, cientificamente embasados, que garantissem a sustentabilidade da exploração e a conservação genética das populações exploráveis. Não há notícia de que, após essa orientação, algum plano de manejo tenha sido apresentado ao IBAMA. Logo, há de se concluir que a propagada base técnica para o manejo florestal sustentável de espécies ameaçadas de extinção em populações naturais do bioma Mata Atlântica não existe e que seu embasamento científico é deveras frágil.
Com o advento da Lei da Mata Atlântica, a proteção às espécies ameaçadas foi consolidada, definindo que o corte e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração do Bioma Mata Atlântica devem ser vedados quando a vegetação abrigar espécies da flora e da fauna silvestres ameaçadas de extinção ou a intervenção ameaçar a sobrevivência das espécies.
A Lei reconhece as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa como bens de interesse comum aos habitantes do País. Essa lei, que se constitui na norma geral nacional, estabelece que o poder público federal, estadual ou municipal poderá proibir ou limitar o corte das espécies da flora raras, endêmicas, em perigo ou ameaçadas de extinção, mas prevê que o plantio ou reflorestamento com espécies florestais nativas ou exóticas independem de autorização prévia, sendo livre a extração de lenha e demais produtos de florestas plantadas nas áreas não consideradas Área de Proteção Ambiental e Reserva Legal, não exigindo, para tal, sequer a apresentação de Plano de Manejo Florestal sustentável. Em resumo: a lei não cria qualquer obstáculo ao plantio de espécies ameaçadas de extinção.
A lista de espécies ameaçadas de extinção publicada pelo Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, relaciona as espécies classificadas nas categorias “Extintas na Natureza” (EW), “Criticamente em Perigo” (CR), “Em Perigo” (EN) e “Vulnerável” (VU), determinando que fiquem protegidas de modo integral, incluindo a proibição de coleta, corte, transporte, armazenamento, manejo, beneficiamento e comercialização. A Araucaria angustifolia figura como espécie Em Perigo (EN). Estão listadas nesse grupo as que enfrentam um risco muito elevado de extinção.
A exploração feita a partir da extração de árvores de florestas naturais é insustentável e não há rótulo que mudará essa realidade. Espécies que já sofreram os efeitos dessa prática predatória – e a Araucaria angustifolia é um exemplo – precisam, urgentemente, de ações inversas, que resgatem sua diversidade e promovam a regeneração das populações.
O plantio dessas espécies é uma alternativa legal, ética e viável no aspecto técnico. Infelizmente, ainda não aprendemos essa lição. Precisamos de madeira? Então teremos que plantar e reflorestar, de preferência, conjugando espécies em cultivos consorciados, prevendo ganhos econômicos, mas também propiciando condições para que os recursos naturais sejam mantidos no longo prazo, colaborando para a conservação da biodiversidade e viabilização de serviços ambientais indispensáveis. Não é meta inatingível e, ao contrário do que muitos difundem, a legislação ambiental fornece toda a base para a implantação desse processo.
A resistência à adoção desse modelo e, por consequência, a insistência na manutenção de um modelo de manejo predatório e insustentável de florestas naturais ainda é presente. Difundidas por grupos fundamentalistas, se prendem a uma crença irracional e exagerada, assumindo posição dogmática que beira ao fanatismo.
Para eles, aproximam-se os dias em que celebrarão misticamente, na liturgia do manejo florestal sustentável, o profundo mergulho na morte. Pois é preciso morrer para experimentar o milagre da ressureição. Ainda assim, querem chamar isso de ciência.
João de Deus Medeiros é biólogo, doutor em Botânica, professor e chefe do Departamento de Botânica da UFSC, conselheiro titular do CRBio-3 e ex-diretor dos Departamentos de Áreas Protegidas e de Florestas do Ministério do Meio Ambiente.
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