A Escarpa Devoniana se situa no encontro de dois importantes biomas brasileiros: Mata Atlântica e Cerrado. Este contato origina uma explosão de biodiversidade típica dos “ecótonos”, que são as fronteiras entre dois grupos de comunidades ou populações. Com relação ao sul do Brasil, Campos Sulinos – ou Campos de Altitude, popularmente chamados de Campos Naturais ou Nativos – é o termo biogeográfico atribuído pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) às extensões campestres presentes nos biomas Mata Atlântica e Pampa.
Apesar da aparência homogênea, os Campos Sulinos podem apresentar expressivas diferenças em sua composição, dependendo das condições ambientais de onde se localizam e da evolução da flora que concentram.
Nesses campos, sobre solos rasos e pobres e afloramentos rochosos, estabeleceu-se com predomínio uma vegetação herbácea, com elementos arbustivos lenhosos. Porém, enquanto todas as ocorrências de campos no Sul se dão sobre derrames basálticos mesozóicos, na Escarpa Devoniana os campos figuram sobre arenitos, o que leva a condições geomorfológicas e pedológicas marcadamente diferentes e únicas no cenário mundial. Isso proporciona uma riqueza de espécies animais e vegetais, digna de figurar na lista de hot spots – locais reconhecidos como de grande expressão na concentração de espécies diferentes, muitas raras, algumas endêmicas.
Estudos realizados pela Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, desde o início da década de 1990, apontam os Campos Gerais do Paraná como área prioritária de “extrema importância para a conservação”,por seu alto potencial biótico e riqueza específica. Eles também foram incluídos nas Áreas Valiosas de Pastizales no cone sul. Nesse sentido, a Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana, criada em 1992, surge como uma das muitas estratégias para a preservação e conservação da vegetação, pois as fisionomias campestres que cobriam extensas áreas do relevo típico da região vinham sendo rapidamente substituídas ou modificadas pelo ser humano, ocasionando uma drástica redução da vegetação original.
Mesmo os fragmentos de campo nativo estando reduzidos a menos de 15% da área da Escarpa –incluindo 0,24% de cerrado – a última estimativa indicou mais de 1.200 espécies só de campo, excluindo a floresta que envolve os fragmentos. Se as estimativas englobarem também os fragmentos de cerrado, com suas formações florestais mais abertas, de arvoretas baixas, o número sobe para cerca de 2.500.
Os campos na Escarpa são antigos, com pelo menos dois milhões de anos e estão profundamente ligados às condições de barreira natural deste magnífico degrau topográfico na paisagem dos planaltos. Contribuíram para sua constituição a migração de espécies de origem australásica – do sul do continente americano – e espécies de origem africana emigrados do planalto central brasileiro. Estão mapeados e acompanhados por imagens de satélite, dentro das mais modernas técnicas de geoprocessamento, todos os fragmentos de cerrado e de campo nativo da Escarpa Devoniana.
A ação antrópica na ocupação das áreas campestres provoca, portanto, a destruição de habitats únicos, formados há milênios, comprometendo a diversidade dos organismos que vivem nesses habitats. Resultam fragmentos reduzidos, contendo populações pequenas, com dificuldades de conexão com outras áreas, o que dificilmente consegue assegurar a manutenção em logo prazo de espécies raras ou endêmicas.
Além da ampliação da conversão de áreas de vegetação nativa em cultivo, outro agravante é a utilização de agrotóxicos, prática que contamina solos, corpos hídricos adjacentes e seleção de pragas resistentes, ervas infestantes e doenças. Porém, mais preocupante ainda, é a absoluta falta de controle da disseminação de Pinus dos florestamentos, cujas sementes, carreadas por distâncias relativamente longas, alteram profundamente a paisagem e as condições de solo, excluindo as espécies nativas.
No Brasil, a proteção legal da biodiversidade está focada na criação e manutenção de unidades de conservação, mas sabe-se que sua implantação, enquanto política conservacionista, ocorreu principalmente pela pressão internacional e pela maior participação das pessoas nas questões ecológicas. Parte substancial da sociedade, no entanto, ainda se posiciona contra a criação e mesmo manutenção dessas unidades. Isso se deve muito à percepção e representação social da desvalorização da biodiversidade como um importante bem público. Pesquisas recentes com relação à percepção que os proprietários de terras tinham sobre o campo nativo e florestas com araucária no sul do Brasil, também observaram que a vegetação nativa não era prioridade para este segmento e que sua conservação demandaria políticas de incentivo financeiro. Desde a década de 1990 já se observava que os remanescentes nativos na paisagem se deviam muito mais a questões nostálgicas ligadas a proprietários que foram tropeiros. As novas gerações, ou novos proprietários que não compartilharam desse passado cultural, não hesitavam em converter os pastos e capões para aumentar a área produtiva de grãos sempre que a legislação o permitia – muitas vezes também de forma clandestina.
A sociedade e o governo do estado devem estar cientes da importância e fragilidade da Escarpa Devoniana. Medidas urgentes devem ser tomadas para regular o uso intensivo no entorno dos fragmentos de vegetação de campo e de cerrado, visando à preservação das espécies que ainda ali se mantêm.
Apenas a demarcação de uma unidade de conservação não atende as necessidades de promover a conservação da biodiversidade. Toda a funcionalidade de proteção depende de vários fatores que cabe aos gestores deliberarem. A funcionalidade é influenciada pela manutenção dos recursos naturais e dos ecossistemas, manejo de espécies, disponibilidade de conectividades com demais áreas protegidas, além de requerer o desenvolvimento de atividades econômicas sustentáveis no entorno das unidades, bem como a implantação de programas de monitoramento. Tudo isso é decorrente de iniciativas que podem ser instrumentalizadas por meio de políticas públicas eficazes, num trabalho mais presente junto às comunidades, que, em geral, vêem a APA com pouca importância, desvalorizando sua riqueza ecológica, visando apenas seu potencial produtivo no agronegócio.
Rosemeri Segecin Moro pesquisa sobre a vegetação e paisagem regionais desde 1992, com projetos aprovados pelo CNPq, Fundação Araucária e Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Fez parte do Grupo de trabalho que instituiu o primeiro Plano de Manejo da APA da Escarpa e já foi membro do Conselho Gestor da APA.
Acesse o artigo no site de O ECO.
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