Por Robson Formica, membro da Coordenação Nacional do MAB
A luta dos atingidos por barragem surgiu na década de 1970, referente a um contexto de opressão. Era um período de exceção com um projeto da ditadura militar que previa construções de grandes obras para o desenvolvimento das forças produtivas, da estrutura e das forças armadas brasileiras. Foram construídas várias obras de porte nacional, nas regiões norte, nordeste e sul, que impactavam e ameaçavam as populações locais, principalmente hidrelétricas que causavam um conjunto de reações.
O povo brasileiro vivia um período de insatisfação, em uma conjuntura muito parecida com a que vivemos no Brasil hoje, com inflação muito alta, salários achatados, condições de vida muito difíceis e poder econômico reduzido. As pessoas viviam com muitas dificuldades para dar conta de suas necessidades básicas e de suas famílias. Havia ainda uma opressão e uma falta de liberdades políticas e de participação muito grande.
Esse contexto contribuiu com a organização e a articulação do povo, para se levantar neste momento frente a essas injustiças, porque as pessoas eram expulsas das suas terras, sem indenizações e sem reconhecimento dos seus direitos. Isso foi criando articulações que no início eram regionais, às vezes por barragens, às vezes por bacias hidrográficas.
No Paraná houve o movimento dos atingidos da Hidrelétrica de Itaipu. Na Região Norte, os atingidos da Hidrelétrica de Tucuruí, no estado do Pará. Ocorreu ainda o caso da Hidrelétrica de Balbina, no estado do Amazonas. Na região nordeste teve a articulação das populações atingidas pelas obras da construção Hidrelétrica de São Francisco. Na Região Sul, as comunidades ameaçadas e atingidas pela construção das usinas do Rio Ribeira, como o Tijuco Alto.
Esses projetos não dialogavam com as necessidades reais, concretas e materiais da população que vivia nessas regiões, porque eram construções para atender a demanda de energia elétrica das grandes empresas, especialmente das grandes corporações transnacionais, ligadas a mineração, metalurgia e siderurgia. Ainda há casos como esses, uma situação que perdura.
Recentemente vimos o apagão no estado do Amapá, onde há usina hidrelétrica que produz muitíssimo, mas o próprio estado do Amapá não está interligado ao sistema nacional de energia elétrica. Essas populações que sofrem os impactos das barragens nem sequer têm acesso à eletricidade ou àquela energia produzida. A produção é exportada para os grandes centros de consumo e industriais. Os interesses das populações locais e regionais não são levados em conta.
Nós do MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens, temos discutido a necessidade da mudança do modelo energético. No Paraná, por exemplo, há várias bacias hidrográficas e rios sendo fatiados, sem um grande projeto. Estão fazendo dezenas de pequenas centrais hidrelétricas e, quando fazemos a discussão, chamamos a atenção para o modelo energético, não é necessariamente a matriz energética.
A matriz é o jeito que se produz, se ela é solar, eólica, hídrica ou se é de combustível fóssil. O país desconsidera esse debate muito importante para que a matriz seja limpa, sustentável, ambientalmente de baixo impacto, socialmente adequada e justa, no ponto de vista da relação social que se estabelece e dos impactos que ela causa nas populações.
O fundamental para o MAB é o modelo energético. Para que se produz energia, como se produz e quem se beneficia da energia em si e do resultado econômico que ela gera?
Na sociedade brasileira e mundial, em grande parte, há um modelo que não visa satisfazer as necessidades reais do povo. Primeiro porque muita gente não tem nem acesso à eletricidade; segundo porque essa eletricidade, no fim da cadeia produtiva, gera exploração do povo, além dos impactos ambientais e sociais das obras que são necessárias para o modelo funcionar; e por fim ela visa centralmente o lucro, não é um bem público, não é direito do povo.
Como mercadoria, a eletricidade necessariamente vai causar exploração, causar exclusão e profundos impactos ambientais porque o objetivo central deste modelo é o lucro.
Temos nesse modelo uma crise energética que é resultado em alguma medida da falta de chuva, mas não totalmente. A partir dos estudos que realizamos e dos dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o que ocorreu no Brasil no último ano foi o esvaziamento dos reservatórios que já estavam baixos, para criar uma crise hídrica artificial que justificasse o aumento das tarifas nesse período.
Por que os preços aumentaram e chegamos a bandeiras extraordinárias, amarela, vermelha e tudo mais? Porque as empresas do setor têm como objetivo central o lucro a todo custo, então encontraram uma justificativa na densidade menor de chuva.
Já vivemos crises mais intensas de estiagem, mas agora na pandemia as empresas, tanto de água quanto de energia, quiseram recuperar e aumentar os seus lucros, à custa da superexploração do povo brasileiro que está na miséria, em plena crise econômica e social.
Também à custa das populações atingidas e sem o reconhecimento dos seus direitos e dos territórios onde elas vivem. À custa da degradação, da destruição do meio ambiente, com a construção de linhas de transmissões pegando áreas de preservação, importantíssimas para a nossa biodiversidade. Isso é feito porque este modelo tem como objetivo o lucro e não as necessidades das pessoas.
Nossa visão do que está ocorrendo é um crime contra a população brasileira, vai contra uma visão de sustentabilidade, uma visão de preservação, de conservação, um modelo que cuide do meio ambiente e do povo.
O setor energético brasileiro está quase todo privatizado. A primeira rodada de privatização foi em 1997/1998 durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Até então a energia elétrica era um serviço público, ou seja, o governo detinha as concessões através das empresas estatais, federais ou estaduais, e cobrava pelo investimento das obras que realizava, mais o custo da operação do sistema de manutenção e mais uma taxa média de retorno. Isso criava o cálculo do preço da energia.
Com o processo de privatização, a energia passa a ser uma mercadoria como se fosse um commoditie, tomando como referência o preço da energia no mercado internacional, onde o padrão de geração, a matriz, são os combustíveis fósseis que têm um custo muito mais elevado. Mas como o Brasil produz energia de hidrelétricas majoritariamente, quase 60%, quem está no controle pode vender a energia vinda de fontes hídricas como se fosse produzida por térmicas. Sendo assim, esse sistema proporciona uma taxa extraordinária.
Por exemplo, a ENGIE, maior geradora privada do Brasil, comprou partes das usinas da Eletrosul, companhia federal que atua no Sul, que controla todas as usinas da Bacia do Rio Iguaçu, Salto Santiago e Salto Osório, e quer controlar Foz Areia, que é a maior usina hidrelétrica da Bacia do Iguaçu.
Para entender, porque a hidrelétrica é tão mais barata, a mesma água que gera energia em Foz de Areia – a primeira usina do Rio Iguaçu – vai gerar depois em Salto Segredo, depois em Salto Santiago, depois em Salto Osório, depois em Salto Caxias e vai gerar depois na usina elétrica Baixo Iguaçu. Ou seja, como o rio tem seis barramentos, a mesma matéria prima vai produzir energia seis vezes. Já nas térmicas, sejam de carvão ou mesmo nuclear, a matéria prima que é utilizada uma vez apenas.
A água proporciona uma eficiência muito maior, além da própria eficiência tecnológica. Quando passa na turbina, a água gera movimento e vira eletricidade com eficiência superior a 90%, as térmicas têm em torno de 30% a 40%. O problema é que isso está completamente dissociado de uma estratégia e de uma política energética que visem abastecimento, soberania nacional e atendimento às necessidades do povo brasileiro em saúde e educação, porque o resultado econômico disso poderia ser o princípio dessas águas.
A Copel, por exemplo, é uma empresa pública, mas sua operação, sua gestão e sua política são tão privadas quanto as empresas privadas. O controle exercido pelo capital financeiro submete as empresas a uma forma de gestão que tem que garantir lucro para os acionistas. É isso que vem ocorrendo, com tarifas cada vez mais caras para garantir o insaciável desejo de lucro dos seus acionistas e controladores privados que colocam os governos de plantão e seus gestores como seus empregados para garantir esses interesses.
Os seus acionistas sequer sabem onde fica o Paraná, mal sabem onde fica o Brasil, possivelmente, e nos controlam e nos submetem a níveis de exploração tão brutais que não são mais admissíveis.
Mariana e Brumadinho
Foi um crime sem precedentes na história do Brasil, talvez na história da humanidade, o que ocorreu em Brumadinho e Mariana. Os defensores da privatização dizem que as empresas privadas são mais eficientes, a gestão é mais racional e elas são mais equilibradas. Em Brumadinho e Mariana, a única casa construída até agora para as populações atingidas, foi feita em mutirão, coordenado pelo MAB, para mostrar que é possível construir e reparar os danos.
O problema é que essas empresas não querem reparar os danos, pois já sabiam que havia riscos elevadíssimos de rompimento de barragens. Mas parar a produção ou desativar aquelas minas geraria “mais prejuízos” do que se essas barragens matassem centenas de pessoas e devastassem bacias hidrográficas importantíssimas. O cálculo é o lucro. Até porque depois do acontecido os lucros da Samarco e da própria Vale aumentaram.
Veja o absurdo daquelas comunidades e daquelas duas importantes bacias hidrográficas, completamente destruídas e ninguém dos gestores está condenado nem preso. Ninguém está com os bens bloqueados, nem as pessoas, nem as empresas. Ou seja, uma completa injustiça com o povo naquela região e com o povo brasileiro, porque a Vale era uma empresa pública estatal que foi privatizada.
Robson Sebastian Formica é formado em História, especialista em Energia e Sociedade e integra a Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Ele participou do Programa Justiça & Conservação no dia 29 de setembro de 2021.
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