Mário Mantovani – 50 anos defendendo o patrimônio público natural brasileiro

Geógrafo, ambientalista, articulista político, um lobista do bem. Depois de 31 anos dedicados à natureza, Mantovani assume outros desafios em biomas brasileiros

Em 2022, o ambientalista Mário Mantovani deu novos passos profissionais, mas sem descalçar a bota com que pisa o solo do bioma que defendeu durante a vida. A Mata Atlântica vai continuar sob sua proteção, agora como diretor da Fundação Florestal do estado de São Paulo.

A mudança incluirá novos biomas: como um dos fundadores da Fundação Amazônia Sustentável, onde ficou por 12 anos no conselho e que agora também passa a atuar como consultor.

Numa articulação de base, que sempre apoiou, Mantovani ainda reassume a Associação Nacional dos Municípios e Meio Ambiente (ANAMMA), que ajudou a criar em 1986. “Meu ideal de vida foi abrir os espaços nas esferas federal, estadual e municipal para a sociedade participar ativamente. É isso que vou fazer onde estou agora”, nos conta Mário Mantovani em entrevista exclusiva ao Observatório de Justiça e Conservação.

Em março deste ano, Mantovani deixou o cargo de diretor na Fundação SOS Mata Atlântica, onde esteve por 31 anos, tendo sido convidado a trabalhar em defesa do bioma logo depois de formado geógrafo. Foi indicado pelo ex-superintendente João Paulo Capobianco, que o chamou de “um alucinado pela ação, um guerrilheiro”.

Meu ideal de vida foi abrir os espaços nas esferas federal, estadual e municipal para a sociedade participar ativamente

Quase 50 anos na linha de frente

Para entender o “ideal de vida” de Mantovani, que está no auge da atividade aos 67 anos, é preciso voltar algumas décadas. Apesar do geógrafo se abster do apelido de “ambientalista”, porque, segundo ele, ambientalistas deveríamos ser todos, Mantovani começou a defender o meio ambiente antes desse movimento ser conhecido. “Minha trajetória começa em 1973, trabalhando com a União dos Escoteiros sobre os temas da Conferência de Estocolmo. Era pensar global e agir local. Na época não existia movimento ambientalista como conhecemos hoje.” Os acampamentos ao ar livre renderam um gosto vitalício. “A gente trabalhava com escotismo, atividade que era reconhecida no mundo, de quem gostava de natureza, aquela coisa.”

Na transição das décadas de 1970 e 1980, Mantovani esteve nos movimentos de defesa da área onde hoje é a Estação Ecológica de Jureia-Itatins, em Peruíbe, São Paulo. Havia um projeto militar para a expansão da energia nuclear, o que traria sérios impactos socioambientais. No local, estava previsto um loteamento, além da instalação de duas usinas nucleares, obras que não se concretizaram.

Mário Mantovani traçava estratégias políticas mas também midiáticas e artísticas, fórmula que levou para as décadas seguintes a fim de ganhar causas ambientais. Esse conjunto de ações resultou na criação da Estação Ecológica de Jureia-Itatins, mais tarde, em 1986. “A agência publicitária que criou a campanha usou na propaganda um origami que se transformava em uma onça, em um tucano. Essa foi a primeira grande campanha de mídia que chamou a atenção não só para a Jureia mas para todas as questões nucleares”, conta.

A força ambientalista brasileira ainda engatinhava, mas a identidade de Mantovani já começava a despontar. “Eu era o tipo estranho, porque o Brasil se dizia o país que vai para frente, tinha a Copa do Mundo, o desenvolvimento a qualquer preço, a abertura da Transamazônica e eu estava falando tudo ao contrário”, referindo ao período que era crítico de obras de infraestrutura em nome da sustentabilidade.

No início dos anos 70, criticava abertamente a fala do ministro do Meio Ambiente na Conferência de Estocolmo, da Organização das Nações Unidas, quando este proferiu ao mundo: “Preferimos a poluição à pobreza”.

 

De carona na estrada à ponte aérea

“Euforia” é a palavra que o ambientalista natural de Assis, São Paulo, reserva para traduzir o sentimento de quando acompanhou o desenvolvimento do Sistema Nacional de Meio Ambiente, o Sisnama. “Em 1981, foquei na implementação local do Sisnama. Foi algo muito avançado à época que hoje, infelizmente, está sendo desmontado.”

Já participante ativo de estratégias para políticas públicas, Mantovani entra no governo do estado de São Paulo dois anos depois, sob a administração de Franco Montoro, onde fica por quatro anos. “Ainda bem que mudou o governo e me chutaram de lá, para eu poder agir em outros lugares”, comemora mais de três décadas depois. “Nesse período, saí visitando 600 municípios paulistas e consegui criar cerca de 300 conselhos.” Para Mantovani, os conselhos são órgãos superiores ao Sisnama e uma ferramenta importante de participação popular e fiscalização da gestão.

Ele credita aos anos 1980 os grandes feitos ambientais, tanto pessoais quanto políticos no país. “Toda a legislação surge aí, o movimento ambientalista se fortalece, a maioria das ONGs bomba nesse período. Estávamos saindo da ditadura, era a redemocratização”, diz. Havia também forte mobilização social para a redação do capítulo de Meio Ambiente Constituição Federal, de 1988.

É dessa década o surgimento das Associações de Reposição Florestal, quando Mantovani ajudou a implementar 29 delas. “Quem consumia um metro cúbico de madeira tinha que plantar três árvores. Para um metro cúbico de carvão, plantava 10, sendo 10% desse total nativas. Foi um movimento dinâmico.” Mário levou o modelo de reflorestamento para a SOS Mata Atlântica, o que reverteu o quadro do desmatamento de árvores nativas no estado com maior número de estabelecimentos industriais no país.

A década do estouro verde não terminou sem a criação do que Mantovani chama de “movimento de desobediência civil dos recursos hídricos”, os consórcios intermunicipais de bacias hidrográficas. Durante os ajustes do consórcio do Rio Jacaré-Pepira, que nasce na Serra do Itaqueri e deságua no Tietê, em São Paulo, as viagens do geógrafo já eram intensas, pedindo carona nas rodovias. “Assim, eu ia longe, até Brasília, para acompanhar a Constituição, o capítulo de Meio Ambiente. Eu tinha os dois lados: o político, de agitação, e o lado criativo”, orgulha-se.

Depois da aprovação da Constituição Federal, há duas marcas das quais Mário gosta de lembrar. Uma delas é a criação do Fórum Brasileiro de ONGs (Organizações Não Governamentais) e movimentos sociais, como preparativo para a ECO-92, a Conferência das Nações Unidas, no Rio de Janeiro.Aoutraé o nascimento da FundaçãoSOS Mata Atlântica, em que esteve presente.

Como representante de vozes do setor, Mantovani esteve como titular absoluto por 10 anos no Consema (Conselho Estadual de Meio Ambiente), além de representar algumas organizações no Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente). Em Brasília, levava as pautas das organizações aos ministérios, entre eles, o de Meio Ambiente.

A longa jornada ambiental dos anos 1980 chega ao fim e abre espaço para uma das maiores conferências ambientais. Na ECO-92, que atraiu autoridades e organizações ambientais mundiais para o Brasil, Mantovani apresentou nas plenárias e em espaços da sociedade civil, como no Aterro do Flamengo, um projeto de despoluição do Rio Tietê. “Foi o maior abaixo-assinado da história, com assinaturas reais, conferidas, não era no teclado como é hoje, não”, comenta. A credencial de Mantovani no evento foi essencial para um plano de recuperação do rio mais poluído do país.

Contribuiu também para as discussões da Lei da Mata Atlântica nos 14 anos de mobilização antes da sua promulgação em 2006. A lei se configurou na principal ferramenta de proteção do segundo bioma mais ameaçado do planeta. Atualmente, a Mata Atlântica conta com 12% de remanescentes da sua cobertura original, segundo o Atlas SOS Mata Atlântica.

Nesse período, Mantovani esteve com as equipes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) na exposição das primeiras imagens de satélite das áreas de florestas do país. “Foi um impacto violentíssimo, mostramos que o Brasil perdia um campo de futebol de floresta a cada quatro minutos”, referindo-se ao marco imagético que mudaria todo o sistema de fiscalização de crimes ambientais, há 30 anos. Em 1997, Mantovani ajuda a formalizar a Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso Nacional que, segundo ele, “inova na forma de ação política”, um modelo que se estendeu para estados e municípios.

Para Mário Mantovani, as florestas eram prioridade, mas nem tudo foram flores. Houve embates com os governos FHC e Dilma Rousseff a partir de suas críticas quanto às políticas ambientais praticadas nessas administrações. O acesso ao Ministério do Meio Ambiente nesses períodos ficou comprometido.

Seu trânsito livre – ou quase – em Brasília, porém, rendeu-lhe resiliência para enfrentar o governo de Jair Bolsonaro. “Este governo não teve nenhuma novidade. Eu já conhecia Bolsonaro de 20 e tantos anos, de dentro do Congresso, ele era ruim e a favor das armas. Tudo o que está falando hoje, de não demarcar Terra Indígena e territórios quilombolas, de reduzir áreas protegidas, ele está cumprindo. Não teve frustração.”

A atuação de Mantovani não se restringe ao Brasil. Ele esteve em cerca de 10 Conferências das Partes da ONU, tendo sido a última em Glasgow, na Escócia, em 2021. De volta ao seu país, que muito tem a avançar na proteção dos biomas, Mantovani não espera a troca de governo para agir. “Eu trago comigo o ideal daquele tempo: vou continuar abrindo os espaços. Dentro da Fundação Florestal, quero estimular a participação dos conselhos gestores. Nos municípios onde houver uma Unidade de Conservação, vou apoiar a criação de Planos de Biodiversidade.”

 

Sobre Mário Mantovani

“Conheço o trabalho do Mário Mantovani no Congresso Nacional há três décadas. Sempre acompanhou muito de perto a Comissão de Meio Ambiente e, de forma geral, os projetos de lei e outras proposições legislativas afetas à questão ambiental. É uma pessoa que tem como característica uma articulação bem ampla, sempre teve interação com diferentes partidos políticos e isso ajuda muito em termos do trabalho de advocacy no Poder Legislativo. Ele consegue resultados significativos nessa luta em defesa da política ambiental e da legislação ambiental. Uma pessoa importante, com histórico que merece ser destacado.”

SUELY ARAÚJO, urbanista e advogada, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, ex-presidente do Ibama (2016-2018)

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“Mário é uma inspiração, um guru. Parece que ele não envelhece, é de uma jovialidade e uma energia contagiantes. É um grande articulador, um lobista do bem que precisa ser reconhecido. Se o Observatório de Justiça e Conservação pudesse entregar um troféu ou medalha para alguém da conservação, certamente seria para o Mario. Em lugar disso, fazemos essa homenagem biográfica. Certamente, ele ainda receberá muitas premiações na vida. Só tenho a agradecer ao Mário por ser essa pessoa que nos inspira, que ensina e trabalha em prol do patrimônio público natural.”

GIEM GUIMARÃES, empresário e diretor-executivo do Observatório de Justiça e Conservação

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“Tenho uma enorme admiração pelo trabalho que Mário Mantovani faz. Ele é um ambientalista do jeito antigo, enfrenta cara a cara, não tem medo de ninguém. Está sempre do lado da verdade, daqueles que são mais oprimidos, é um grande exemplo de coragem e de participação. Ele é o cara mais presente em todas essas questões que conheço; conheço outros ambientalistas pelos quais tenho admiração, mas o Mário tem essa participação contínua em Brasília. Trabalhei com ele por muitos anos, quando foi presidente da Fundação SOS Mata Atlântica, e sempre foi um grande guerreiro pela SOS. Agora, como presidente da Fundação Florestal, tenho certeza que ele vai apontar caminhos para a melhoria das instituições públicas. Figura insubstituível.”

ROBERTO KLABIN, fundador e terceiro presidente da Fundação SOS Mata Atlântica

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“Mário Mantovani é um ícone vocacionado à defesa do Meio Ambiente que deve ser sempre lembrado e festejado, não somente por ser uma figura humana incrível, com uma energia fora do comum e uma alegria e otimismo contagiantes, mas pelo seu profundo conhecimento ecológico, das pessoas e das instituições. Mário tem uma capacidade admirável de articulação e convencimento, sempre na luta incansável em prol do avanço das políticas ambientais, em especial no âmbito da Mata Atlântica. É sócio honorário da Abrampa pelos mais de 30 anos dedicados à militância em defesa da Mata Atlântica e dos demais biomas brasileiros, uma grande inspiração para todos nós.”

ALEXANDRE GAIO, promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná e presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) no triênio 2022-2025

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“Fomos militantes juntos na questão ambiental quando ele estava envolvido na participação dos municípios nas ações de meio ambiente, montagem de consórcios municipais e nas associações de reposição florestal. Quando eu era superintendente da Fundação SOS Mata Atlântica, decidimos lançar uma campanha em defesa da despoluição e recuperação do Rio Tietê. Eu fiquei encarregado de identificar uma pessoa que fosse adequada para conduzir e implementar o projeto. Lembrei imediatamente do Mário, principalmente em função da sua capacidade de articulação. Ele é uma pessoa que cativa no relacionamento com todos em geral, assim, o projeto foi um sucesso. Na SOS Mata Atlântica, o Mário ocupou uma linha de ação muito importante na área de políticas públicas, especialmente na relação com o Congresso Nacional. Ele conseguiu pautar temas relevantes para a agenda socioambiental assim, como ajudou também a segurar iniciativas de retrocesso. Ele é capaz de envolver um conjunto grande de organizações para promover avanços na agenda da sustentabilidade. O Mário é uma pessoa muito preparada, inteligente, com boa capacidade de liderança.”

JOÃO PAULO CAPOBIANCO, vice-presidente no Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS

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