Os animais abrigados pelo Instituto Raquel Machado são parte da minha família. Todos tem uma história triste. Minha luta é para mudar a qualidade de vida e a história deles

Por Raquel Machado, médica dermatologista e fundadora do Instituto Raquel Machado

*O texto é uma reprodução de trechos da entrevista concedida ao Programa Justiça & Conservação

Sou mineira e quando eu vim morar em São Paulo, 16 anos atrás, senti muita falta do contato com a natureza. Por isso compramos um sítio em Porto Feliz, interior de São Paulo, onde o antigo proprietário abandonou um cachorro e um papagaio. Era algo que eu não tolerava ver, aquela ave dentro da gaiolinha, e senti que precisava fazer alguma coisa por esse animal.  Sou médica, não sou veterinária ou bióloga, então na minha cabeça poderia soltar essa ave.

Mas procurei orientação nos órgãos ambientais para saber o que poderia ser feito pois  tinham me falado que a ave estava lá 10 anos presa, não conseguia nem se mover, algo horrível. Foi aí que descobri a triste realidade dos animais que são apreendidos vítimas do tráfico e não tem para onde ir. Até então não sabia que tinham tantos animais que não poderiam voltar à natureza e isso era muito triste.

Construímos o primeiro recinto para essa ave, uma loura, e para receber outros papagaios.  Recebi 18 papagaios de uma vez! Fui convivendo e aprendendo um pouco mais, descobri que papagaio era territorial, que brigavam e tudo mais. Tive que construir um outro recinto para a loura porque ela estava apanhando lá dentro. Depois passaram-se alguns anos e ela acabou falecendo.

Naquele recinto que ficou livre recebi tucanos. Depois fiz um outro recinto para periquitos e assim fui ampliando e fazendo outros recintos maiores e recebi araras. Aos poucos ampliei os espaços para elas poderem voar. A maioria não voava e hoje em dia praticamente todas voam.

Depois, com o surto da febre amarela, vários macacos ficaram órfãos no estado de São Paulo e me ofereceram filhotes de bugio. Saí correndo para construir outro recinto.  Depois foram chegando macacos-prego também e eu comecei a pedir recintos de presente para o meu marido. Ele me deu de presente de aniversário um recinto de macaco-prego, onde recebi filhotes vítimas do tráfico.  Os animais foram chegando e cada vez mais vou ampliando, para que eles tenham uma qualidade de vida melhor do que tinham.

Eu sempre acho que não é o suficiente, porque o ideal é a vida livre. E sempre recebo ligações para abrigar mais animais. Neste momento, não posso mais receber nenhum porque meu objetivo realmente é dar uma qualidade de vida para eles.

Quem tem um mantenedor e quem convive sabe que macaco não tem como ser pet, pet é cão e gato

Hoje o Instituto está com mais de 20 macacos, todos eu recebi filhotinho, foram tratados na  mamadeira de 2 em 2 horas, um trabalho super de dedicação mesmo, eu tenho uma equipe maravilhosa, com um coração enorme que ama os animais. Os macacos crescem e vão tendo aquele instinto de animal silvestre, à medida que ficaram adolescentes, começaram a puxar meu cabelo com mais força, me morder com mais força, então já não era mais hora de entrar no recinto e sim deixar o convívio entre eles.

Mas as pessoas querem, acham bonitinho ter um macaco, colocam roupinha e tudo. Depois que crescem, viram um problema porque ele não pode conviver com ninguém da família, nem  ser mais reintroduzido na natureza.

Eu mesma recebi a Vovó Elza, uma macaca que viveu 40 anos acorrentada, apreendida após uma denúncia. Hoje em dia, com muito esforço e trabalho, ela convive em grupo. Temos que educar as pessoas e eu educo até as minhas pacientes quando estão falando sobre esse negócio de querer ter um macaco ou uma arara, então eu já começo a falar lá na hora.

Em parceria com o Projeto Arrastão, dei aulas e palestras para crianças e adolescentes, explicando a questão do tráfico de animais e os problemas todos que existem.  Agora vamos  começar um trabalho também de educação ambiental com as escolas de Porto Feliz junto com a prefeitura. O ponto número um é educação ambiental, porque enquanto houver pessoas comprando animais vai ter um tráfico e para  acabar com isso, somente com educação. Se não gerar consciência nessas crianças e adolescentes, daqui 10 anos podem se tornar traficantes, é assim que acontece.

É possível fazer um trabalho de reintegração

Recentemente o instituto recebeu uma anta, o Orelha, que vivia em outro mantenedor que fechou e me pediram para recebê-lo. Eu cerquei um espaço com um lago e coloquei o Orelha lá. Quando ele chegou, ficava rodando ao redor do Lago e nem ia beber água, tivemos que colocar um recipiente com água pra ele. Hoje em dia ele nada, mergulha, voltou a ter o instinto. Por isso que realmente acredito que é possível fazer um trabalho de reintegração bem feito, avaliando as áreas, desenvolvendo um trabalho correto, não só soltando os animais no meio ambiente, mas ensinando a caçar novamente, a comer os alimentos certos, esse é meu objetivo hoje.

Fiz esse trabalho de mantenedor por mais de 10 anos como pessoa física, por paixão pelos animais. Parte do faturamento da minha clínica sempre foi para essa causa e nunca divulguei isso. Como queria fazer algo que realmente tivesse um impacto maior para o meio ambiente e para a nossa fauna, resolvi criar o instituto. Fiz no meio da pandemia, com a ajuda de amigos e  de pacientes que se tornaram amigas.

Meu dia está curto, 24 horas é pouco para mim. Eu realmente me encontrei, tive essa paixão pelos animais a vida inteira e é isso que eu quero fazer, só que tenho minha profissão como médica dermatologista, o que banca os meus projetos. Na medida que o instituto for crescendo e caminhando sozinho, vou poder diminuir os meus atendimentos.  Por enquanto vou levando desse jeito, como eu posso, mas quem sabe daqui uns 5 ou 10 anos poderei me dedicar full time às causas ambientais.

*Atualmente o Instituto Raquel Machado abriga mais de 200 animais resgatados de tráfico e maus tratos. Além da área em Porto Feliz, interior de São Paulo, o Instituto mantém a RPPN do Saci que protege 178 hectares de Mata Atlântica no limite do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, em Mato Grosso do Sul. Nessa reserva, são realizadas pesquisas científicas, monitoramento da fauna e projetos de reabilitação e soltura de animais silvestres. Ela também é proprietária da Fazenda Santuário, também em Bonito (MS), onde uma parte significativa da área está sendo convertida em RPPN, abrigando áreas de Cerrado e Mata Atlântica.

Raquel Machado ainda é uma das coproprietárias da Fazenda Santa Sofia, no Pantanal, que integra um corredor biológico para futuros projetos de reintrodução de fauna silvestre. Recentemente o instituto iniciou atuação na Região do Rio Azul, no Pará, com conservação de 6 mil hectares de floresta. Raquel também integra o Projeto Bonito Não Atropela com ações para reduzir o atropelamento de animais silvestres nas rodovias.

Raquel Machado compareceu ao Programa Justiça & Conservação no dia 24 de agosto de 2021. Confira a entrevista na íntegra (clique aqui)

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