Efeitos da pandemia não perdoam indígenas nem comunidades tradicionais brasileiras

Xavange. Crédito: Edison Bueno
Xavange. Crédito: Edison Bueno

A confirmação oficial do primeiro caso de contaminação de indígena com Covid-19, provocada pelo novo coronavírus, em abril, acendeu um alerta. Uma jovem de 20 anos, pertencente a etnia Kokama, que trabalha como agente de saúde indígena na região da cidade de Santo Antônio do Içá, no Amazonas, foi contaminada com a nova doença para a qual ainda não há remédio e nem mesmo vacina. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), que atua na região, confirmou que ela foi a primeira indígena do Brasil com coronavírus. 

Antes dela, um médico que presta serviços no DSEI da região foi contaminado. Ele, que não apresentava qualquer sintoma, entrou em contato com indígenas e outros profissionais da saúde antes de saber que estava com o vírus. Com o risco de disseminação da doença entre os povos indígenas, duas aldeias inteiras chegaram a ser colocadas em isolamento. 

Mesmo assim o vírus foi transmitido em Santo Antônio do Içá a, pelo menos, outros três indígenas apenas na primeira semana de abril. Outros casos ainda foram computados envolvendo indígenas somente neste período: um em Manaus e um no Pará. Em ambas as situações as vítimas morreram. O caso do Pará representou o primeiro óbito por Covid-19 de uma indígena. A vítima foi uma senhora de etnia Borari de 87 anos, que só teve o diagnóstico confirmado pela Secretaria de Saúde do Pará depois de ter sido sepultada, na vila de Alter do Chão, no distrito de Santarém. Em Manaus, a vítima era um homem, de 55 anos, da etnia Mura que morava na capital amazonense havia alguns anos. 

Segundo informações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) existia até o transcorrer da primeira semana de maio um total de 214 casos confirmados de indígenas com Covid-19 e um total de 16 mortos. Entre os casos confirmados estava o de um adolescente de 15 anos que foi o primeiro ianomâmi a contrair o novo coronavírus, em Roraima. 

A dificuldade de locomoção, pela localização geográfica das aldeias dificulta o encaminhamento de contaminados a hospitais. Muitas vezes se leva horas ou dias, especialmente na região amazônica, para chegar ao serviço de saúde mais próximo. Etnia Piraha, AM. Crédito: Acervo CR Madeira-Funai
A dificuldade de locomoção, pela localização geográfica das aldeias dificulta o encaminhamento de contaminados a hospitais. Muitas vezes se leva horas ou dias, especialmente na região amazônica, para chegar ao serviço de saúde mais próximo. Etnia Piraha, AM. Crédito: Acervo CR Madeira-Funai

Esses dados indicam que a pandemia que o mundo enfrenta já afeta indígenas e pode se estender também às demais comunidades isoladas – como os quilombolas – no país. Hoje, no Brasil, vivem cerca de 800 mil índios, segundo dados do Censo 2010. Até a primeira semana de maio, por exemplo, as 34 Dseis (Distritos Sanitários Especiais Indígenas que atuam na região), contabilizavam outros 96 casos de indígenas suspeitos de terem contraído coronavírus. Se levarmos em conta que a cultura indígena é voltada para a vida comunitária, o que inclui a vida em aldeias, repouso em recintos coletivos e compartilhamento de diversos utensílios, o risco de contaminações aumenta caso o vírus alcance essas localidades. Isso coloca em risco o futuro de, pelo menos, parte das 6.238 aldeias que existem no Brasil. 

Hoje, o Ministério da Saúde dispõe de 67 Casas de Apoio a Saúde Indígena (Casais) e de 1.199 Unidades Básicas de Saúde Indígena para atender toda essa população. Caso o vírus se alastre para todas essas localidades, não haverá infraestrutura para atender a todas as pessoas. Não existem nem máscaras para serem disponibilizadas para essa população. A orientação é para que os indígenas evitem deslocamentos das aldeias a centros urbanos e não permitam a entrada de pessoas externas em suas terras. 

Soma-se a isso o fato de que dados do próprio Ministério da Saúde comprovam que doenças respiratórias já são a principal causa de morte entre as populações nativas brasileiras. A atual pandemia torna esse risco ainda maior. Em 2018, segundo o Ministério da Saúde, doenças infecciosas e parasitárias – tipos de enfermidades consideradas evitáveis – foram responsáveis por 7,2% das mortes ocorridas entre indígenas, ante uma média nacional de 4,5%. 

Para além da doença, as comunidades isoladas sofrem com o desabastecimento, já que alguns alimentos são comprados em áreas urbanas, e muitos também dependem de programas sociais, como o Bolsa Família. Contudo, são orientados a não saírem de suas terras para evitar deslocamentos, a fim de impedir o contágio. Com isso, não é possível ter acesso nem ao dinheiro proveniente da ajuda de projetos sociais. 

Infraestrutura de saúde 

A falta de acesso à saúde é um dos principais entraves para a sociedade indígena. São poucos recursos e infraestrutura existentes para tratar casos graves, o que pode ser necessário no caso de propagação do coronavírus. 

A dificuldade de locomoção, pela própria localização geográfica das aldeias, também dificulta o encaminhamento a hospitais. Muitas vezes se leva horas ou dias, especialmente na região amazônica, para chegar ao serviço de saúde mais próximo. 

As populações indígenas têm o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), que é um sistema de saúde próprio dentro do Sistema Único de Saúde, coordenado pela a Secretaria Especial de Saúde Indígena, que pertence ao Ministério da Saúde. No Paraná, por exemplo, DSEI Litoral Sul é o responsável por atender os indígenas do estado na questão de saúde pública. 

Mais de 6.238 aldeias que existem no Brasil estão ameaçadas pela pandemia de coronavírus no Brasil. Tupi-Guarani, Aldeia Pekoa Mirim Edison Bueno Funai
Mais de 6.238 aldeias que existem no Brasil estão ameaçadas pela pandemia de coronavírus no Brasil. Tupi-Guarani, Aldeia Pekoa Mirim Edison Bueno Funai

 A nossa rotina mudou um pouco, pois estamos em quarentena. Não estamos saindo daqui, nem recebendo visitas. A população indígena está, sim, em extrema vulnerabilidade em relação ao coronavírus

Segundo informações do próprio site do sistema, são 46 unidades básicas de saúde indígena para atender um total de 26 mil indígenas, segundo aponta o Censo 2010. Desse total, perto de 12 mil vivem em terras indígenas. O estado do Paraná tem 57 aldeias, que estão distribuídas em 28 municípios paranaenses, de acordo o Plano Estadual de Saúde 2016- 2019. 

Na prática, esse sistema funciona como postos de saúde próximos às comunidades indígenas. Prioriza-se, assim, a atenção básica e os usuários que precisam de atendimento mais complexo – que geralmente ocorre com a Covid-19 – demoram mais para encontrar serviços de média e alta complexidade. 

Diante da pandemia, a Secretaria de Saúde Indígena passou a orientar os postos de saúde indígenas a priorizar o atendimento de casos suspeitos da doença e recomenda as mesmas medidas de prevenção adotadas no resto do país, como a higiene das mãos e o distanciamento social. 

O mais difícil é que minha aldeia vive de artesanato. As famílias continuam produzindo, mas não podem sair para a venda. Isso dificulta a questão de alimento de quem basicamente vive do artesanato. Essa parte é bastante difícil 

A escola e o posto de saúde que um dia existiram na comunidade do Maciel, no litoral do Paraná, hoje já não funcionam mais. A carência de serviços públicos expõe as pessoas a riscos ainda maiores. Comunidade Maciel, PR. Crédito: Bruno Santos
A escola e o posto de saúde que um dia existiram na comunidade do Maciel, no litoral do Paraná, hoje já não funcionam mais. A carência de serviços públicos expõe as pessoas a riscos ainda maiores. Comunidade Maciel, PR. Crédito: Bruno Santos

Consequências 

O cenário de calamidade também já alcança aldeias indígenas isoladas no Paraná. A cacique da aldeia Tekoa Takuaty, localizada na Ilha da Cotinga, no litoral do Estado, Juliana Kerexu, conta que os indígenas têm procurado se manter em isolamento para evitar que o caos se instaure na região. Eles, que são da etnia Guarani Mbya, têm como referência de saúde uma equipe da DSEI que tem polo-base de atendimento para as aldeias do litoral no município de Paranaguá. A equipe da saúde foi até a Ilha vacinar os indígenas contra a gripe no final do mês de março. 

“A nossa rotina mudou um pouco, pois estamos em quarentena. Não estamos saindo daqui, nem recebendo visitas. A população indígena está, sim, em extrema vulnerabilidade em relação ao coronavírus”, ressalta. Segundo ela, a saída é buscar informações para proteger seu povo. “A gente tenta de várias maneiras proteger nossos anciões e vivendo como dá, aqui mesmo. A gente precisa se precaver”, completa Juliana. 

A quarentena também traz preocupação para a sobrevivência do povo indígena na Ilha da Cotinga. “O mais difícil é que minha aldeia vive de artesanato. As famílias continuam produzindo, mas não podem sair para a venda. Isso dificulta a questão de alimento de quem basicamente vive do artesanato. Essa parte é bastante difícil”, lamenta Juliana. 

Reservas Indígenas no Paraná

Risco a comunidades isoladas 

do Paraná é multiplicado 

A pandemia afetou a rotina de todos. Mas a situação exige um olhar especial para comunidades isoladas que estão à mercê de uma estrutura de saúde pública já deficiente e enfrentam graves dificuldades para a sobrevivência financeira. Situações como essa são vividas por pessoas que moram no litoral do Paraná, por exemplo. 

A Vila do Maciel é uma das 25 comunidades de pescadores artesanais do litoral do Paraná, localizada em Pontal do Paraná. Embora esteja no continente, a Vila do Maciel só pode ser acessada pelo mar. São cerca de 15 minutos de barco saindo do balneário de Pontal do Sul. Esse isolamento complica a sobrevivência dos pescadores que tiram da pesca o dinheiro para custear suas vidas. 

Além disso, a escola e o posto de saúde que um dia funcionaram na comunidade, hoje já não existem mais. Maria Neves de Souza, a Milla, uma das lideranças do local, conta que a situação está muito complicada para todos que dependem da pesca. “Os pescadores não estão conseguindo vender. Uns que têm freezer, congelam o que conseguem pescar. Às vezes conseguem vender aos restaurantes que servem marmita. Mas a maioria só está pescando para o consumo mesmo. Outros têm até medo de sair para o mar para pescar”, salienta Milla. Ela relata também que a população do Maciel está muito assustada. “Na comunidade não tem postinho de saúde e o mais próximo é o de Pontal do Paraná ou o da praia de Shangri-lá”, comenta. 

O que diz a FUNAI? 

Desde o mês de março, a Funai afirma que implementou uma série de medidas para prevenir o contágio da Covid-19 entre as populações sindígenas. Já foram entregues às aldeias um total de 17.706 cestas básicas (sendo 12.015 com recursos próprios e 5.691 cestas de doações). 

Desde as medidas iniciais até o momento, a Funai liberou cerca de R$ 10,8 milhões, originários de suplementação orçamentária, e R$ 3 milhões de recursos próprios. Os valores oriundos de suplementação vêm sendo utilizados para diferentes fins, como a compra emergencial de alimentos para áreas de extrema vulnerabilidade social, o deslocamento de equipes às Frentes de Proteção de povos indígenas isolados e de recente contato, bem como a aquisição de veículos e embarcações para viabilizar o transporte de servidores até as aldeias e de indígenas até as unidades de saúde. 

Além disso, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) destinou à Funai um recurso de quase R$ 6 milhões para a distribuição de cerca de 310.000 (trezentas e dez mil) cestas de alimentos às famílias indígenas no contexto da epidemia do coronavírus. 

A aquisição destes 310 mil itens é realizada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), e a entrega será executada pela Funai já nas próximas semanas. O objetivo é garantir a segurança alimentar de cerca de 154 mil famílias indígenas em 26 Unidades da Federação. Isso mostra que em nenhum momento a instituição se eximiu de qualquer obrigação legal de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas. 

Uma das primeiras ações da Funai frente à expansão da Covid-19 no território nacional foi a recomendação do isolamento social coletivo nas comunidades indígenas. 

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