Câmara dos Deputados incentiva grilagem de terras da União, ignorando apelo de diversos setores sociais

Possível fraude na redação do texto pode facilitar ainda mais o crime de grilagem

Quem ocupou ou ainda ocupará no futuro terras pertencentes à União ou aquelas destinadas à reforma agrária terá o título de propriedade facilitado. O PL 2.633/2020, conhecido como PL da Grilagem, foi aprovado no começo da semana e já movimenta a Câmara com questionamentos do texto final,  escrito com alterações daquilo que foi acordado em plenário.

Durante a votação, foi discutido que ocupantes de terras da União podem regularizar a situação da área a partir do CAR (Cadastro Ambiental Rural) ativo, ou seja, fase entre a inscrição e a homologação, que aponta não haver sobreposição da área reivindicada com terras públicas, Terras Indígenas e unidades de conservação.

No entanto, no texto final publicado ontem consta apenas exigência de “inscrição no CAR”, que pode favorecer ainda mais o crime de grilagem pois não haveria o filtro da sobreposição de áreas. Deputados contrários ao projeto anunciaram que entrarão com recurso para mudança do texto.

PL aprovado

Pelo projeto de lei, ocupantes de terras públicas passam a ter direito ao título de propriedade de áreas que autodeclaram com até seis módulos fiscais, sem necessidade de vistoria em campo para verificação de irregularidades ambientais. O título da terra pública para um dono particular ocorre por meio de concessão, compra ou doação da área.

435 deputados participaram da votação do projeto, aprovado com folga: 296 deputados foram favoráveis e 136 se posicionaram contra o PL. Houve uma abstenção. O texto segue agora para apreciação do Senado Federal.

De autoria do deputado Zé da Silva (SD-MG), o PL 2.633 é uma reconfiguração da Medida Provisória 910 de 2019, de proposição do presidente Jair Bolsonaro. A MP perdeu validade em maio de 2020 por não ter sido votada na Câmara.

No texto da extinta MP, terras de até 15 módulos fiscais podiam ser regularizadas sem vistoria prévia pelo Incra (Instituto Nacional  de Colonização e Reforma Agrária). Ou seja, grileiros que avançaram sobre maior perímetro de terras públicas seriam beneficiados se a MP fosse aprovada. Em seu lugar o projeto desta semana passou com texto similar na Câmara mas com área menor para dispensa de vistoria (seis módulos fiscais).

Especialista sênior de políticas públicas ambientais do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, Suely Araújo alerta que a metragem ainda pode subir. “O Senado tende a aumentar a área. Um texto do senador Irajá Abreu (PSD-TO) propõe dispensa de vistoria prévia em áreas de até 15 módulos fiscais. Isso na Amazônia é um perigo, porque tem municípios na região em que um módulo mede 100 hectares”, prevê Araújo.

O relator do PL, o deputado Bosco Saraiva (SD-AM), afirmou que a proposta foi amplamente discutida pelos líderes partidários e que estava “madura” para ir à votação. Essa afirmação é equivocada, já que houve trâmites para apurar a votação. Várias organizações ambientais afirmam que o projeto foi discutido sem debate.

O diretor-executivo do Observatório de Justiça e Conservação, Giem Guimarães, afirma que a vontade do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), foi decisiva para a aprovação do PL. “O projeto passou de forma atropelada. Lira apoiou o trâmite em regime de urgência e a proposta foi apreciada sem passar pelas comissões. Ele agiu de forma arbitrária”, avalia Guimarães.

Da Rede Pró UC, a diretora-executiva Angela Kuczach afirma que Lira atende a interesses de uma minoria.  “Inúmeros setores da sociedade, o econômico e o agronegócio, empresários, ambientalistas, todos se posicionaram contra o PL. O Lira não escutou ninguém. Ele atendeu aos interesses de um pequeno grupo, sem discussão”.

No início da sessão que aprovou o projeto (03 de agosto), o Psol tentou sua retirada de pauta e o PT propôs o adiamento da discussão. Ambos partidos não tiveram sucesso nas tentativas.

 

Legislação: como fica?

Redação Final Congresso Nacional: Redação Final PL2633 de 2020

 

O texto ainda pode ser modificado no Senado. O declarante precisa apenas estar inscrito no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que não precisa estar homologado, conforme as emendas 13 e 19 aprovadas para o novo texto. Também é necessário aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA).

Angela Kuczach alerta que grileiros serão beneficiados porque poderão declarar áreas ocupadas da forma que quiserem. “O grileiro pode dizer que a área tem reserva legal, que tem área de proteção nas margens de rios… e não ter necessariamente. Não terá vistoria prévia dos órgãos competentes para verificar isso”, afirma.

Terras Indígenas (TIs) e territórios tradicionais, como as ocupadas por quilombolas e ribeirinhos, ficaram de fora do texto e continuam seguindo regras específicas. No entanto, o perigo de roubo desses territórios continua, prevê Suely Araújo. “Em tese é isso, mas na prática a declaração e regularização será por via remota e haverá confronto entre áreas griladas e territórios tradicionais em processo de demarcação. Depois de emitido o título para o invasor, a briga na Justiça leva anos para reverter”, diz.

 

Amazônia em pé é exigência de setores brasileiros e estrangeiros

Em junho deste ano, 173 empresários e intelectuais brasileiros assinaram uma carta articulada pelo Observatório de Justiça e Conservação (OJC) e a Rede Pró UC, com posicionamento contrário ao PL da Grilagem e outros projetos de lei que também atingem unidades de conservação e povos tradicionais. A carta pediu a retirada do PL de pauta. Entre as signatárias estão a Natura, o banco Itaú e a Associação Brasileira do Agronegócio (ABRAG).

Faz um tempo que empresas europeias se esforçam em avisar que deixarão de comprar produtos do Brasil caso o PL seja aprovado. Quase 50 empresas do Reino Unido e Holanda assinaram carta e a enviaram à Câmara dos Deputados, que até agora mostrou pouca ou nenhuma preocupação quanto ao anunciado boicote europeu.

Carta de signatários europeus ao Congresso Nacional:
https://www.retailsoygroup.org/wp-content/uploads/2021/05/Letter-from-Business-on-Amazon_2021.pdf

O recado foi direto para os parlamentares. “Se essa ou outras medidas que minam a proteção desta existência [populações indígenas e comunidades tradicionais] se tornam lei, nós não teremos escolha a não ser reconsiderar nosso apoio e utilização da cadeia produtiva de commodities da agricultura brasileira. Nós pedimos que o governo brasileiro reconsidere esta proposta”, afirmam os signatários europeus de redes de supermercados e cadeias alimentícias.

É consenso entre as organizações ambientais citadas afirmar que o maior problema da aprovação da lei é justificá-la pela flexibilização de regras para pequenos proprietários. “Os agricultores familiares já são beneficiados pela lei há anos [lei federal 11.952/1979]. Essa alteração da lei é um estímulo ao desmatamento no governo Bolsonaro, que já é marcado pelo aumento expressivo da invasão de terras”, ressalta Araújo.

A imagem lá fora fica comprometida e as sanções podem ser imediatas. “O mundo civilizado lá fora olha para o nosso país por conta da Amazônia. O que estamos dizendo com esse PL é que nós não nos importamos com a floresta. As sanções econômicas serão gigantescas e o agronegócio já está sentindo isso”, finaliza Angela Kuczach da Rede Pró-UC.

Deputados Paranaenses tiveram peso na aprovação

Dos 30 deputados que representam o Paraná no Congresso, 63% foram favoráveis ao PL. Em sua maioria, votaram sim partidos favoráveis à agenda bolsonarista, ruralista e apoiadores de Arthur Lira (MDB, PL, Podemos, PROS, PSC, PSD, PSDB, PSL, PTB, Republicanos, Cidadania). Entre as exceções, deixou de exercer o voto o líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).

Contrariando a orientação do partido, o deputado Luciano Ducci (PSB) foi favorável. Da mesma sigla, que orientou pelo voto contrário, Aliel Machado (PSB) deixou de votar.

PDT, PT e PV defenderam a proteção de terras públicas e de territórios tradicionais.

FAVORÁVEIS (19)
Hermes Parcianello (MDB)
Sergio Souza (MDB)
Christiane de Souza Yared (PL)
Luiz Nishimori (PL)
Giacobo (PL)
Diego Garcia (Podemos)
Toninho Wandscheer (PROS)
Paulo Eduardo Martins (PSC)
Sargento Fahur (PSD)
Vermelho (PSD)
Rossoni (PSDB)
Aline Sleutjes (PSL)
Felipe Francischini (PSL)
Filipe Barros (PSL)
Luisa Canziani (PTB)
Aroldo Martins (Republicanos)
Luizão Goulart (Republicanos)
Rubens Bueno (Cidadania)
Luciano Ducci (PSB)

 

CONTRÁRIOS (5)
Gustavo Fruet (PDT)
Enio Verri (PT)
Gleisi Hoffmann (PT)
Zeca Dirceu (PT)
Leandre (PV)

 

NÃO VOTARAM (6)
Roman (Patriota)
Ricardo Barros (PP)
Reinhold Stephanes Junior (PSD)
Aliel Machado (PSB)
Boca Aberta (PROS)
Pedro Lupion (DEM)