No mesmo ano em que foi promulgada a Constituição Federal, o país perdeu de forma brutal o líder Francisco Alves Mendes Filho, conhecido como Chico Mendes. No dia 22 de dezembro de 1988, ele foi vítima da tragédia de uma morte que ele mesmo antecipou e denunciou, por interesses de latifundiários, interessados em avançar o desmatamento da Amazônia para exploração de monocultura e gado.
A criação de repercussão de seu assassinato levou ao mundo a situação da floresta no Brasil e despertou a preocupação mundial por uma consciência ambiental. O seringueiro, sindicalista, ativista político e ambientalista brasileiro se tornou um mártir mundial ao lutar pela proteção da Bacia Amazônica e pelo desenvolvimento sem destruição. Das comunidades da floresta surgiu o conceito de Reserva Extrativista, onde a exploração dos recursos pode ocorrer de forma harmônica com a conservação da natureza.
Na década de 1970, a política para a Amazônia implantada pelo regime militar gerou grandes conflitos. Os subsídios para a borracha foram cortados e o governo, baseado no mito do território vazio, negou a existência de populações indígenas e tradicionais que habitavam a região havia séculos. Para os militares, a Amazônia precisava ser ocupada por razões de segurança nacional. Com incentivos fiscais, a região foi aberta à agropecuária e a projetos de colonização.
Essa política causou especulação fundiária, invasões de terra em larga escala e o desmatamento de grandes extensões, impedindo a permanência dos seringueiros e outras comunidades tradicionais na floresta. Os confrontos e assassinatos eram constantes. A devastação ambiental disparou para aumentar áreas de pasto.
Em uma época em que seringueiros trabalhavam como cativos, em regime de quase escravidão, que incluía castigos físicos, a antropóloga e professora Mary Allegretti viajou para os confins da Amazônia e acabou se juntando à luta dos povos da floresta, levando educação e divulgando a causa internacionalmente.
Allegretti conheceu o líder seringueiro em 1981, quando ele era vereador em Xapuri, pequena cidade no Acre. Ela foi a principal responsável por aproximar Chico Mendes de ONGs e jornalistas internacionais e, junto com outros especialistas, desenvolveu o modelo jurídico das Reservas Extrativistas, que mais tarde passou a integrar a legislação brasileira. Quando o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) foi criado, em 2000, a Reserva Extrativista passou a fazer parte da lei nacional, que também criou a modalidade Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).
A equipe do Jornal Justiça & Conservação conversou com a antropóloga para entender como a luta de Chico Mendes resultou na criação de 94 Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável, federais e estaduais, que atualmente cobrem uma área de quase 25 milhões de hectares, representando 4,6% da Amazônia Legal, 19% das Unidades de Conservação da Amazônia e 8% das florestas da região, beneficiando um milhão e meio de pessoas e provendo serviços ambientais para o país e o planeta.
Sozinhos dificilmente seria possível fazer essa mudança. Como em toda luta ambiental você precisa de alianças. Chico Mendes era uma pessoa que tinha uma capacidade muito grande de articulação.
Escravidão
O primeiro contato com a realidade dos seringais brasileiros chocou a jovem professora de antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR): “Fui fazer meu mestrado no Acre e fiz meu estudo naqueles seringais de antigamente da Amazônia, onde havia trabalho semi escravo. Os seringueiros passavam décadas e gerações vivendo dentro da floresta, ganhando praticamente nada. Estudei um desses seringais e quando saí de lá estava muitíssimo impressionada em saber como ainda existiam seringueiros cativos de um patrão”, relembra Mary Allegretti.
Mary voltou um ano mais tarde para fazer o doutorado: “Todos me diziam que eu precisava conhecer Chico Mendes, porque ele me explicaria o que estava acontecendo no Acre. Na época havia muitas revoltas, muitos conflitos e eu fiz uma entrevista com ele. Após isso, fui convidada para conhecer não os ‘seringais do cativeiro’, como eles falavam, mas os ‘seringais libertos’, onde os seringueiros não viviam mais com patrão e vendiam a borracha no mercado, liderando esse movimento”.
Educação
Nos seringais não havia escolas e tampouco o interesse dos latifundiários em construí-las. Chico Mendes começou a trabalhar nos seringais ainda criança e foi alfabetizado somente aos 16 anos. A partir daí compreendeu a importância da educação para melhoria das condições de vida e igualdade.
Ao conhecer Mary Allegretti, Chico Mendes teve a ideia criar uma parceria que deu origem ao Projeto Seringueiro, a primeira experiência de alfabetização de adultos na floresta. “Eu aceitei e pedi demissão da Universidade. Foi uma escolha, ou fazia uma coisa ou outra, e optei por trabalhar com Chico e o movimento. Então voltei para Curitiba e fiz uma cartilha chamada Poronga, que é o nome de uma lâmpada que os seringueiros colocam na cabeça quando vão extrair borracha de noite, na floresta. É como se fosse a luz que vai iluminar a mente. Fiz cartilhas de português e matemática. No ano seguinte, em 1982, voltei para lá. Outros colegas construíram uma escola e nos juntamos para dar início ao projeto de educação”.
Legado do Empate
“Ninguém solta a mão de ninguém”
Um dos principais legados de Chico Mendes é o chamado Empate, quando os moradores de comunidades tradicionais davam as mãos para evitar que áreas fossem cortadas para avanço da agropecuária. Eles reuniam suas famílias, iam para as áreas ameaçadas de desmatamento, desmontavam os acampamentos dos peões e paravam os motosserras.
“Empatar na Amazônia significa impedir. Quando acontecia um desmatamento, eles reuniam um grupo, que incluía também mulheres e crianças, e iam até a área e paravam o corte, ‘empatavam’ o desmatamento. Depois vinham as autoridades e a justiça e começavam a negociação. Existia o direito de posse da área que era dessas famílias e, na maior parte dos casos, as comunidades ganhavam. Pela lei, havia a possibilidade de essas pessoas serem indenizadas e irem embora. Mas imagine o que o seringueiro ganha de indenização em uma casinha de palha, sem infraestrutura nenhuma. Então eles passaram a recusar a indenização e o pleito era permanecer onde estavam”, relembra Mary.
A antropóloga reforça que, para as populações extrativistas, a floresta é meio de vida. Se uma árvore cai ou é derrubada, uma forma de vida acaba. São das castanheiras e seringueiras que essas pessoas dependem para viver.
Em decorrência dos empates, muitos líderes de resistência acabaram mortos, como Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, assassinado, em 1980, dentro da sede do sindicato.
Na época do governo Tancredo Neves, o Brasil passava pelo processo de democratização e havia muita discussão sobre as políticas para o país, mas sobre os seringueiros e a Amazônia nenhuma menção era feita. Percebendo isso, Mary decidiu seguir para Brasília: “Eles já faziam um movimento de defesa da floresta e ninguém sabia. Eu fui atrás de dar uma oportunidade de visibilidade e, em conjunto com Chico Mendes, organizamos o primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985”
Mais de 100 seringueiros criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros como entidade representativa e a partir daí elaboraram uma proposta original de reforma agrária: as Reservas Extrativistas.
“Nesse evento histórico, convidei pessoas de fora do Brasil, entre elas Adrian Cowell, diretor de cinema inglês. Ele foi para Brasília com a equipe e filmou o evento. Após conhecer Chico Mendes, Cowell decidiu acompanhar e documentar a luta dele, no Acre”.
Depois do Encontro Nacional, a luta dos seringueiros começou a ficar conhecida. Sua projeção internacional foi resultado do documentário Eu Quero Viver, lançado internacionalmente por Adrian Cowell, em 1987, e que mostrava a luta de Chico para proteger a floresta e os direitos dos trabalhadores.
Foi essa articulação internacional que conseguiu indicar Chico Mendes para dois prêmios internacionais. Entre 1987 e 1988, ganhou o Global 500, prêmio da ONU, na Inglaterra, e a Medalha de Meio Ambiente da Better World Society, nos Estados Unidos. Nessas viagens ele deu entrevistas para diversos jornais como The New York Times e The Guardian. Jornalistas e pesquisadores internacionais visitaram os seringais e difundiram as ideias pelo planeta, o que não era feito pela mídia nacional.
Ao mesmo tempo em que Chico conquistava o respeito internacional, era mais ameaçado em Xapuri. Os empates terminavam em prisão. As promessas de regularização dos conflitos fundiários não se concretizavam. A ideia de criação de reservas extrativistas se arrastava na burocracia federal.
“Havia uma grande pressão de fazendeiros. Desmoralizavam e desacreditavam Chico na imprensa com campanhas difamatórias. Os jornais nacionais ignoravam a causa completamente. A primeira vez que a imprensa nacional foi para lá, foi em outubro de 1988, dois meses antes do assassinato”, recorda Mary Allegretti.
Em 22 de dezembro de 1988, em uma emboscada nos fundos de sua casa, Chico Mendes foi assassinado com um tiro no peito, a mando do latifundiário Darly Alves, grileiro de terras com história de violência em vários lugares do Brasil.
A repercussão foi imediata no mundo inteiro. A indignação se refletiu em seguida no Brasil. A imprensa brasileira, que até então ignorava a luta dos seringueiros, procurou recuperar o tempo perdido. A forte reação e a pressão da opinião pública levaram à condenação dos criminosos em 1990, fato inédito na justiça rural no Brasil.
As primeiras Reservas Extrativistas foram criadas em março de 1990, reduzindo conflitos, concretizando o sonho de Chico Mendes de ver a floresta valorizada e assegurando uma perspectiva de futuro aos filhos dos seringueiros e extrativistas.
O principal legado de Chico Mendes são as Reservas Extrativistas, que representam a primeira iniciativa de conciliação entre proteção do meio ambiente e justiça social, antecipando o conceito de desenvolvimento sustentável, que surgiu com a Rio 92.
Uma questão importante da Reserva Extrativista é que não se trata de dividir um pedaço da área para cada família, afinal os recursos estão em todos os lugares. Na floresta, as árvores estão espalhadas. Para um extrativista viver da borracha, da castanha ou dos peixes dos lagos, precisa existir um território amplo, assim como para os povos indígenas. Trata-se de um território e não de um loteamento. O território é da União, uma área pública, e as pessoas que vivem lá criam uma associação e recebem uma concessão de uso para explorar os recursos.
“A proteção dos recursos é de interesse público e, se fosse propriedade privada, certamente não existiria mais nenhuma reserva. A pressão econômica seria muito forte e esses trabalhadores não conseguiriam se defender. O conceito de uma Unidade de Conservação com pessoas dentro dela nasceu ali. E não só com gente que precisa ser tolerada. Pessoas que administram, gerenciam e têm direitos sobre aquele território. Esse conceito foi muito revolucionário, foi uma combinação de conhecimentos”, ressalta Allegretti.
Hoje, além das áreas das florestas, há reservas extrativistas marinhas, para pescadores, em vários lugares do litoral do Brasil. Essas comunidades tradicionais vivem há gerações na interface com recursos naturais. “A reserva extrativista foi um conceito que surgiu com os seringueiros e esse protagonismo precisa ser reconhecido. É preciso assimilar o protagonismo de populações pobres e marginais, respeitá-las como igual, como grupo detentor de saber, de conhecimento. Eu e outros profissionais criamos o Instituto de Estudos Amazônicos, em Curitiba, e desenhamos o modelo jurídico da reserva extrativista. Combinamos a luta com a questão técnica. Esse movimento conquistou muita coisa, no Acre e em outros Estados da Amazônia. É impressionante de se ver. Como em todo Brasil essa questão é uma luta, no caso dessas comunidades, é o sonho de Chico Mendes concretizado”, destaca Mary Allegretti.
Biografia
Chico Mendes nasceu no dia 15 de dezembro de 1944 no seringal Porto Rico, próximo à fronteira do Acre com a Bolívia, em Xapuri, estado do Acre. Filho de seringueiro, passou sua infância e juventude ao lado do pai cortando seringa.
A vida no seringal, pautada por relações de grande exploração, moldou no jovem seringueiro um sentimento de revolta contra a injustiça. Rebeliões eram sufocadas pela violência da polícia, e os donos dos seringais puniam com castigos físicos aqueles que ousavam se rebelar
Aos 16 anos, Chico aprendeu a ler, escrever e pensar com Euclides Fernandes Távora, refugiado político que morava próximo da colocação da sua família. Esse fato teve uma grande influência na sua vida. Quando começaram a ser formados os sindicatos no Acre, ele tinha consciência de que havia chegado a hora de mudar a realidade dos seringais.
Em 1975, Chico ingressou no Sindicato de Trabalhadores Rurais e durante vários anos lutou pelos direitos dos seringueiros. A convivência de Chico com a floresta e o conhecimento que adquiriu sobre como obter da natureza os meios de vida deram origem a uma teoria que seria, mais tarde, comprovada: a de que os benefícios derivados da manutenção da floresta são maiores do que o valor que se obtém com a sua derrubada.
Foi essa matriz ideológica formada pelo sindicalismo, pela defesa dos direitos humanos, pelo respeito à floresta, que marcou a identidade de Chico Mendes como líder político e que o fez conquistar respeito local e internacional.
ICMBio
O principal órgão público de atuação ambiental leva o nome do líder seringueiro. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), criado em 2007, é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e executa as ações do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Cabem a ele programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e o poder de polícia ambiental para a proteção das Unidades de Conservação federais.
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