O vírus do negacionismo

Deputado federal Osmar Terra, em março de 2019, então no cargo de ministro de Estado da Cidadania, em audiência na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. Crédito: Roque de Sá/Agência Senado.
Deputado federal Osmar Terra, em março de 2019, então no cargo de ministro de Estado da Cidadania, em audiência na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. Crédito: Roque de Sá/Agência Senado.

No último fim de semana, minha bolha no Twitter foi tomada pelas repercussões de uma postagem do deputado federal e ex-ministro da Cidadania Osmar Terra (MDB-RS), contendo uma alegação extraordinária: a de que a quarentena dos cidadãos imposta na Itália não havia tido efeito algum sobre a pandemia – e a prova seria que o número de casos e mortes no país europeu aumentara após a imposição do “lockdown”. 

post, e outros subsequentes nos quais Terra recorria ao antigo sortilégio de mentir com estatísticas, teve milhares de compartilhamentos e ganhou uma previsível avalanche de contestações da comunidade baseada em realidade, entre elas a da advogada Gabriela Prioli, a arquetípica fada sensata. As contestações faziam valer o apelido dado ao ex-ministro de Osmar Terra Plana. 

O que mais me chamou atenção, porém, foi uma pequena marca discursiva nas postagens de Terra e de seus apoiadores: o que o médico gaúcho estava apresentando nada mais era do que um “ponto de vista diferente”, uma “opinião diferente”, que estava sendo interditada pelos “histéricos”. Veja, por exemplo, o tuíte do deputado José Medeiros (Podemos-MT) – aquele que já chamava garimpeiros e madeireiros ilegais de “trabalhadores injustiçados” antes de isso virar política pública: 

Déjà-vu 

A “outra abordagem” de Osmar Terra ganhou nesta segunda-feira o alto da página de opinião da Folha de S.Paulo, que publicou artigo do ex-ministro, com duas demãos de verniz científico, atacando o isolamento social. O leitor descobre que Jair Bolsonaro, longe de ser um jumento irresponsável que age por impulso, desconectado das recomendações da ciência e de todos os governantes do mundo exceto os da Bielorrússia e do Turcomenistão, é um líder com “coragem” de ir “contra uma correnteza de pânico”. Para não deixar dúvida sobre sua intenção de expor o 

“ponto de vista diferente”, a Folha deu destaque ao artigo em sua capa. 

Se você acha que já viu esse filme antes, é porque viu. Trata-se de uma estratégia antiga e bem-sucedida de minar consensos científicos emergentes ao transformá-los num “debate legítimo” entre opiniões igualmente válidas. 

Essa estratégia foi aplicada pela primeira vez nos anos 1950, quando a indústria do tabaco dos EUA desenvolveu um manual de relações-públicas para reagir ao corpo de evidências científicas que ligavam o fumo ao câncer. Este envolvia contratar “cientistas” contrários, alguns deles com credenciais sólidas (em outras áreas), achar brechas nas pesquisas que pudessem servir de base para contestações, distorcer a interpretação de números e financiar a produção e a publicação de estudos enviesados que pusessem em dúvida o que a imensa maioria da ciência séria concluía. 

Exército de negacionistas 

A ideia nunca foi propriamente ganhar o debate suplantando as evidências ou encontrando falhas que derrubassem o consenso científico; o objetivo da quizumba era a própria quizumba (“a dúvida é o nosso produto”, declarava um célebre memorando das empresas em 1969, que empresta o título ao livro espetacular de Naomi Oreskes e Eric Conway, “Mercadores da Dúvida”, de 2010, sobre a indústria do negacionismo). Foi usada para negar a 

ligação entre CFCs e o buraco na camada de ozônio, nos anos 1980. E foi adaptada por evangélicos no final dos anos 1990, também nos Estados Unidos, para forçar o ensino do criacionismo nas escolas, sob o slogan “teach the controversy” (“ensine a controvérsia”), que equiparava pseudociência de inspiração bíblica com a teoria da evolução. O objetivo declarado era meter uma “cunha” no darwinismo a fim de derrotar “o materialismo científico e seus legados destrutivos”. O documento-síntese da iniciativa foi batizado de Estratégia da Cunha. 

Mas em nenhum lugar o manual do tabaco brilhou tanto – nem causou tanto estrago – quanto na campanha movida a partir dos anos 1990 pelas indústrias do carvão mineral e do petróleo para desacreditar a ciência climática e barrar a ação contra o aquecimento global. Um exército bem financiado de negacionistas se dedica há três décadas a garimpar e amplificar, na narrativa, os buracos no corpo de evidências a sugerir que atividades humanas estão superaquecendo a Terra. Aproveitando-se do fato inerente à atividade científica de que todo conhecimento é incompleto e provisório, o negacionismo sequestrou o debate público sobre clima, distorcendo evidências acachapantes (e mais do que suficientes para embasar ação) e levando líderes políticos ao seu território favorito, o da catimba. 

‘Ponto de vista diferente’ 

A imprensa não falhou uma vez sequer em cair no truque: afinal, a boa prática jornalística reza que toda história tem um “outro lado”, e editores sem o ferramental teórico para decidir que um desses “lados” simplesmente não tinha razão sempre acharam melhor expor o “ponto 

de vista diferente”, porque, né, o leitor tem o direito de saber, vai que tudo isso é uma grande conspiração. 

Essa fraude intelectual maciça teve duas consequências nefastas: primeiro, permitiu que chegássemos em 2020 a quase 1,2ºC de aquecimento global em relação à era pré-industrial, basicamente condenando o esforço de limitar esse aquecimento a 1,5ºC como preconiza o Acordo de Paris. Segundo, tirou tempo e saúde mental dos cientistas do clima, lançados pelados e sem armas na ágora para enfrentar o leão da comunicação pública (spoiler: foram devorados). Ao ponto de frequentemente os climatologistas incorrerem em autocensura, dourando a pílula das próprias conclusões para não soarem “catastrofistas”. 

A ascensão da extrema-direita nos Estados Unidos a partir de 2009, num balaio que incluía as viúvas da Guerra Fria, o establishment da velha indústria e o fundamentalismo cristão, deu ao negacionismo a chance de sua vida: para que influenciar o governo quando a gente pode ser o governo? Isso enfim ocorreu em 2016. O resto é história. 

Cuestão’ canalha 

O atual regime brasileiro, como espelho do Mundo Bizarro do trumpismo (formado por aliança análoga entre militaristas, evangélicos e a escória do setor privado), é terreno fértil para os negacionismos. Há um negacionista climático cuidando da política externa, outro cuidando do Meio Ambiente e um criacionista decidindo sobre bolsas de pós-graduação. Todos falando em “pluralidade de visões” e chamando os defensores do consenso de “autoritários”. Chupa essa uva. 

Como o Brasil não se cansa de ultrapassar o limite do surreal, agora ganhamos também um incrível negacionista da pandemia, na figura de autoridade do doutor Osmar Terra, O Médico. Chega a ser comovente que um sujeito que deu um piti e censurou um estudo de R$ 7 milhões por discordar de seu resultado venha encher a boca para falar de “histeria” e “pontos de vista diferentes”. Mas eis a mágica: hoje ou amanhã algum cientista revoltado vai mandar outro artigo à Folha contestando Terra no mérito. E, Shazam! está criado um debate. Dúvida incutida na cabeça do povo. Quizumba estabelecida. Vitória de Bolsopai e de seus Bolsofilhos Vírion, Capsídeo e Envelope. 

Como escrevi antes, a realidade da Covid-19 essencialmente condena o negacionismo da doença e das duras medidas contra ela a um cheque de realidade representado por filas de corpos insepultos e caminhões frigoríficos servindo de necrotérios. Donald Trump que o diga. A “cuestão” especialmente canalha da estratégia negacionista é que qualquer resultado melhor que 1 milhão de mortes no Brasil será apropriado pela narrativa bolsolavista – se seus porta-vozes sobreviverem eles mesmos à pandemia, dúvida legítima caso sigam em suas vidas privadas o mesmo que recomendam ao populacho – como prova de que o remédio foi exagerado, e não como sinal de sucesso das medidas de mitigação. Por enquanto estão quebrando a cara, já que três quartos da população apoiam as medidas de isolamento. 

A ver o que revelarão as próximas semanas dessa série de terror que estamos sendo obrigados a maratonar. 

Claudio Angelo é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de “A espiral da morte: como a alterou a máquina do clima” (Companhia das Letras, 2016). 

Artigo publicado originalmente no portal “Direto da Ciência”. 

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