Os Guarani vivem no Litoral do Paraná há, no mínimo, dois mil anos. Essa presença milenar na região deixou profundas marcas no território e em suas florestas. Cultivares como milho, mandioca, diversos tipos de batatas, feijão, amendoim, dezenas de palmeiras e tantos outros frutos da agricultura, foram, em grande medida, heranças que os Guarani transmitiram aos europeus e a seus descendentes. A presença Guarani é fundamental na formação das comunidades caiçara e é da língua desses povos que emprestamos muitos dos nomes que batizam nossos rios, nossas montanhas, nossas cidades e também nosso Estado: Guaraguaçu, Itaqui, Ararapira, Itiberê, Guaraqueçaba, Guaratuba, Paranaguá, Curitiba, Paraná, entre tantos outros.
Quando chegaram os primeiros europeus na ilha da Cotinga, em 1560, as áreas que hoje chamamos “Litoral do Paraná” foram chamadas de “país dos Carijós”. Mudou a forma de registro, mas não mudou o povo. Aqueles que foram chamados “Carijó” no passado são os Guarani do presente. Permanecem a mesma língua e a mesma relação vital com as florestas.
Apesar da inegável contribuição dessa civilização agroflorestal para o povo paranaense e para o povo brasileiro, não tem sido fácil para os Guarani manter o Litoral como casa. Há muita pressão contrária que coloca territórios tradicionais em risco. A construção de parques industriais, de portos, investimentos imobiliários, desmatamento da Mata Atlântica e algumas restrições ao manejo florestal são exemplos.
O reconhecimento oficial dos territórios Guarani no Litoral do Paraná data de período recente e é ainda extremamente restrito. Apenas 0,27% do Litoral está assegurado para seu povo originário. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, várias aldeias tiveram de ser abandonadas nas ilhas das Peças e de Superagui. Todavia, outras surgiram, tais como Kuaray Haxa (Antonina) e Guaviraty (Pontal do Paraná). Atualmente são seis comunidades indígenas no Litoral do Paraná e apenas a Terra Indígena da Cotinga é uma área homologada pelo Governo Federal.
O Zoneamento Ecológico Econômico do Litoral do Paraná (ZEE) teria sido uma ótima oportunidade para que o planejamento do Estado enxergasse a sociobiodiversidade que faz de nós quem somos. Porém, infelizmente, o ZEE não reconheceu o devido valor da presença dos Guarani no Litoral, assim como praticamente ignorou as várias dezenas de comunidades caiçaras que vivem na região.
Olhando para esse contexto ao lado dos Guarani, vemos que o planejamento do governo paranaense considera o futuro do Litoral a partir de uma perspectiva paradoxal: investe, incentiva e expande atividades degradantes, ao mesmo tempo em que impede e restringe o manejo agroflorestal de populações que vivem e sempre viveram na mata Atlântica. Neste mar de restrições, não é demasiado dizer, navegam juntos indígenas e caiçaras.
Assim, vemos políticas públicas negarem, duplamente, a presença desses povos que estão entre as nossas principais raízes culturais. É o que vivem, por exemplo, as comunidades Guarani de Karaguatá Poty e Guaviraty em Pontal do Paraná. Sem que o processo de demarcação da Terra Indígena Sambaqui tenha sido concluído, uma mistura de “interesses público-privados” vem impondo a implantação de grandes projetos que visam reconfigurar a vocação do município. Uma região de extrema biodiversidade pode estar em vias de ser transformada em sede de mais um complexo portuário e industrial colocando em risco a fauna, a flora e as comunidades locais.
Não se trata apenas de uma nova rodovia que seria feita para atender ao porto, mas da mudança violenta de cenários no médio e longo prazo que isso ocasionaria. De imediato, são 27 milhões de metros quadrados de desmatamento e/ou alteração florestal causados pela Faixa de Infraestrutura e pela Zona Portuária, porém, os prejuízos serão ainda maiores. Imaginem que em poucos anos mais de 1.500 caminhões trafegarão diariamente por Pontal. Por que não concentrar os impactos dessas atividades onde já está consolidado outro complexo portuário: o de Paranaguá, por exemplo? Por que fazer de Pontal uma segunda Paranaguá – ou uma Paranaguá de segunda?
Caso a Faixa de Infraestrutura (obra pública) e o porto (obra privada) se efetivem, há um risco claro e eminente de que, mais uma vez, seja negado o direito territorial indígena no Litoral. Perderemos todos.
No entanto, há ainda oportunidades no horizonte. Para citar um exemplo, neste momento, está sendo elaborado o “Plano de Desenvolvimento Sustentável do Litoral”, que irá propor cenários de futuro para o nosso Litoral. Pergunto-me apenas se esses cenários contemplarão as pessoas que vivem aqui e, se no futuro que projetamos, há espaço para as pessoas e comunidades que fizeram e fazem essa região especial. Questiono-me, também, se esse insistente esquecimento que o Paraná projeta sobre seu próprio passado continuará sendo traduzido em incapacidade de enxergar o próprio futuro. É como refletia Verá Tupã, liderança Guarani: “quem construiu a Terra? Nem nós, nem o branco. Foi Deus que construiu pra vivermos neste mundo. Nem pra brigar, nem pra matar por causa da terra. É para vivermos tranquilos”.
Paulo Roberto Homem de Góes é antropólogo, doutorando no Programa de Pós-Graduação de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), professor colaborador da PUC/PR, sócio da Jerivá Socioambiental e apoiador do Observatório de Justiça e Conservação (OJC).
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