Yanomami – De volta ao século XVI

30 anos após demarcação de seu território, povo Yanomami regressa a situações análogas à época do descobrimento

Vista aérea de garimpo ilegal em terras Yanomami. Foto: Rogério Assis - ISA

As violações de direitos humanos, indígenas e territoriais nos vários cantos dos 9,7 mil hectares da Terra Indígena Yanomami (TIY) não tiveram fim passadas três décadas da homologação do território, em 1992. Ao contrário, este é o pior momento vivido pelas comunidades desde então, segundo lideranças indígenas e indigenistas.

Filho de Davi Kopenawa, líder indígena conhecido internacionalmente pelo trabalho de defesa dos territórios indígenas, Dário Kopenawa Yanomami teme por seu território. Ele conta que os Yanomami estão cercados por ameaças diárias pela contaminação de mercúrio nos rios e solo de onde retiram sua água e alimento, pelo avanço do desmatamento e pela violência física e sexual contra seus parentes.

Dário Kopenawa. Foto: Marcelo Seixas

“A atuação dos invasores aumenta cada vez mais em nosso território. As autoridades nacionais e internacionais sabem o que está acontecendo: o aumento do garimpo e das violações do povo Yanomami, estupro das meninas e mulheres Yanomami, toda a sociedade brasileira já conhece isso”, afirma Dário, que também é presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY).

Dário e seu povo participaram ativamente da produção de três relatórios sobre a ausência de proteção estatal no território. Ao todo, oito povos indígenas sofrem ataques na TI continuamente, situação que deu nome a mais recente publicação, “Yanomami Sob Ataque!”, de abril de 2022. Os relatórios anteriores, “Cicatrizes na Floresta” e “Xawara: Rastros da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami e a Omissão do Estado”, revelam números, mapas e depoimentos do grave contexto Yanomami.

Segundo dados divulgados pela HAY, o garimpo ilegal cresceu 46% entre 2020 e 2021. O total acumulado de área desmatada dentro da TI neste período já alcançou os 3.272 hectares de clareira. A análise “Yanomami Sob Ataque!” revela que esse é o maior crescimento de desmatamento ilegal desde a homologação da TI em 1992. A vegetação é destruída para a prática criminosa de extração de minérios como o ouro e a cassiterita dentro do território indígena, atividade esta chancelada pela presidência da república.

Bolsonaro é declaradamente favorável ao garimpo em territórios indígenas. Autor do Projeto de Lei 191/20, o Poder Executivo Federal visa permitir atividade econômica de mineração dentro de Terras Indígenas (TIs). Em abril de 2019, Bolsonaro afirmou que “em Roraima tem R$ 3 trilhões embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso de forma racional, obviamente. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”. O presidente ignora a cultura e o modo de vida dos povos indígenas que valoriza a floresta viva e em pé em lugar da exploração puramente extrativista de suas terras.

Segundo Dário Kopenawa, Bolsonaro não apoia a proteção do povo Yanomami. “Se o governo apoia a mineração no território Yanomami, isso significa cada vez mais o aumento de vulnerabilidade do nosso território. Os governos estaduais não protegem, o federal não coíbe a entrada dos invasores. Nós estamos lutando para retirar os garimpeiros e pedindo ao governo para cumprir o seu dever, cumpra a legislação brasileira que fala que os territórios indígenas devem ser protegidos”, reitera.

 

Mais de três décadas de luta pela vida

O jovem líder indígena Dário Kopenawa Yanomami passou quatro meses organizando assembleias e a logística para as comemorações de aniversário da homologação das terras, no dia 25 de maio.

A demarcação da TI foi fundamental para fortalecer os espaços comuns do território, antes subdividido entre cerca de 300 aldeias na área. Em maio deste ano, a data de aniversário de três décadas da homologação foi comemorada mesmo em meio ao caos, uma vez que os trâmites de demarcação de territórios indígenas foram totalmente paralisados no governo Bolsonaro.

Pai de Dário Kopenawa Yanomami, Davi Kopenawa é levantado por indígenas nas comemorações na comunidade Xihopi, na TYI, no Amazonas. Foto: Arquivo Pessoal

Por telefone, Dário Kopenawa Yanomami disse ao OJC que durante as comemorações foi possível resgatar a ancestralidade e história Yanomami, além de pedir proteção. “Fizemos alianças com as lideranças dos territórios Kaiapó, Munduruku e Yanomami, e colocamos na pauta o futuro indígena.”

Esteve presente nas comemorações, Sydney Possuelo, que era presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) no ato da assinatura da homologação. Ao Instituto Socioambiental, Possuelo afirmou que a situação está tão complexa hoje como estava há 30 anos.

Também participaram das comemorações representantes políticos da comissão de parlamentares que apuram violações em Terras Indígenas, como a primeira deputada federal indígena, Joenia Wapichana (Rede). A deputada conhece a realidade local Yanomami por ser natural da comunidade Truaru de Cabeceira, na região da capital roraimense.

Perguntado sobre a participação política nos espaços legislativos, Dário afirma que a representatividade indígena precisa aumentar para proteção dos povos originários e também dos não-indígenas. “Nossa querida deputada Joenia é sozinha. Muitos [deputados] não apoiam a questão indigena. Os nossos povos precisam conversar de igual pra igual, a gente precisa entrar pela porta do governo que se chama Congresso”, conclui.

O antes e o depois da demarcação

Cerca de 600 pessoas entre indígenas e convidados comemoraram os 30 anos de demarcação da TIY e debateram o futuro do território. Foto: Arquivo Pessoal

Profundo conhecedor do território Yanomami, o missionário italiano Carlo Zacquini, que acumula quase 60 anos ao lado das comunidades, também participou da reunião de comemoração. Ele falou ao OJC sobre sua percepção para o futuro dos Yanomami.

Tendo encontrado o primeiro grupo de Yanomami em 1º de maio de 1965, Zacquini caminhou na mata fechada por dias a fio em diversas ocasiões para ajudar comunidades que, ao longo de anos, estiveram doentes pela malária e outras doenças levadas pelas invasões às terras indígenas. Nesta atividade, ele mesmo contraiu a doença dezenas de vezes.

Na década de 1990, sem que a TI tivesse sido ainda homologada, o missionário recorda a luta que travou pela saúde do povo indígena estando na Comissão Pró-Yanomami (CCPY).

O único momento de tímida felicidade da entrevista ocorreu ao contar que a malária foi praticamente erradicada do território Yanomami depois de vários anos de trabalho de organizações roraimenses, como a Urihi, e outras internacionais e o governo. “A área ficou livre da malária; quando havia um surto num lugar, uma equipe ia lá. Nós nem acreditávamos que tínhamos conseguido esse feito”, comenta.

Sobre a situação na TIY nos dias atuais, Zacquini disse lamentar profundamente. “Vejo que hoje tudo é ainda pior. Agora está escancarada a autorização para entrar na TI. Mesmo que as leis proíbam, que os juízes determinem, o governo autoriza”, afirma.

“É uma situação de calamidade, de guerra contra os Yanomami. Agora é diferente das primeiras invasões: são empresas, empresários que entram. Não se garimpa mais com bateias. Usam retroescavadeiras, tratores. O desastre é muito rápido e profundo, de difícil recuperação”.

Aos 85 anos de idade e com problemas auditivos consequentes das malárias que contraiu, o italiano acompanha como pode os Yanomami de casa, em Boa Vista, Roraima. “A história mostra um caso de muita eficiência na destruição de um povo. A guerra contra os Yanomami é uma decepção contínua, um pesadelo. Se esse governo não é genocida, eu não sei o que é genocídio”, finaliza.

 

Histórico

Os Yanomami constituem uma sociedade de caçadores-agricultores da floresta tropical do norte da Amazônia, cujo contato com a sociedade nacional é relativamente recente. Seu território cobre aproximadamente 190 mil km quadrados, situados em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela, na região do interflúvio Orinoco-Amazonas. Formam um conjunto cultural composto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas de uma mesma família.

No Brasil, entre as décadas de 1910 e 1940, alguns grupos Yanomami tiveram seus primeiros contatos com representantes da fronteira extrativista local, com soldados da Comissão de Limites e funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), e viajantes estrangeiros. Entre 1940 e meados dos anos 60, a abertura de alguns postos do SPI e, sobretudo, de várias missões católicas e evangélicas, estabeleceu os primeiros pontos de contato permanente no território indígena.

Esses postos constituíram uma rede de pólos de sedentarização, fonte regular de objetos manufaturados e de alguma assistência sanitária mas, muitas vezes, origem de graves surtos epidêmicos (sarampo, gripe, coqueluche, etc.).

Nas décadas de 70 e 80, projetos de desenvolvimento começaram a submeter os Yanomami a formas de contato maciço com a fronteira econômica regional em expansão, principalmente no oeste de Roraima: estradas, projetos de colonização, fazendas, serrarias, canteiros de obras, bases militares e primeiros garimpos. Esses contatos provocaram um choque epidemiológico de grande magnitude, causando pesadas perdas demográficas e uma degradação sanitária generalizada.

Os anos 70 foram marcados pelo Plano de Integração Nacional (PIN), lançado pelo governo militar da época, com a abertura de um trecho da estrada Perimetral Norte (1973-1976), e de programas de colonização pública (1978-1979) que invadiram o sudeste das terras Yanomami. Nesse mesmo período, o levantamento dos recursos amazônicos pelo projeto RADAMBRASIL (1975) detectou a existência de importantes jazidas minerais na região. A publicidade dada ao potencial mineral do território Yanomami desencadeou um movimento progressivo de invasão garimpeira que acabou se agravando no final dos anos 80, tomando a forma de uma verdadeira “corrida do ouro” a partir de 1987. Cerca de cem pistas clandestinas de garimpo foram abertas no curso superior dos principais afluentes da margem direita do Rio Branco, entre 1987 e 1990, e o número de garimpeiros na área Yanomami de Roraima foi então estimado entre 30 e 40 mil. Embora a intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuído muito no começo dos anos 90, até hoje, núcleos de garimpagem continuam encravados na terra Yanomami, de onde seguem espalhando violência e graves problemas sanitários e sociais.

Além do persistente interesse garimpeiro na região, esse território indígena está quase totalmente coberto por alvarás e requerimentos de prospecção mineral registrados no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) por empresas de mineração públicas e privadas, nacionais e multinacionais.

Por outro lado, os projetos de colonização implementados nas décadas de 70 e 80 no leste e sudeste das terras Yanomami criaram uma frente de povoamento que tende a se expandir para dentro da área Yanomami devido ao fluxo migratório direcionado para Roraima – tendência que poderá se ampliar no futuro em consequência do apagamento dos limites da demarcação pelo mega incêndio de 1998.

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