Só venceremos a pandemia com transparência

MP 928 defendia que, quem quisesse, que esperasse acabar o estado de calamidade pública, no dia 31 de dezembro de 2020, para voltar a ter acesso às informacoes públicas do Governo Federal. Crédito: Pixabay
MP 928 defendia que, quem quisesse, que esperasse acabar o estado de calamidade pública, no dia 31 de dezembro de 2020, para voltar a ter acesso às informacoes públicas do Governo Federal. Crédito: Pixabay

Foi por pouco que Jair Bolsonaro (ex-PSL, agora sem partido) não logrou de aproveitar da pandemia do novo coronavírus para ferir a Lei de Acesso à Informação (LAI) no Brasil. No dia 23 de março, o presidente da República assinou a Medida Provisória 928, que, na prática, dispensava os órgãos públicos do Governo Federal de responderem pedidos de informação até o final de 2020. 

O truque era simples: suspendia o prazo das respostas quando elas dependessem de servidores em quarentena ou em regime de teletrabalho, portanto, impedidos de buscar dados guardados fisicamente nos ministérios, por exemplo, de poder falar com outros funcionários, ou depender da resposta de setores que estivessem na linha de frente do combate à Covid-19. Texto vago, sem discussão prévia com a sociedade civil e que ignora completamente o alto grau de digitalização da gestão pública. 

Para piorar, a MP 928 cancelava a possibilidade de o cidadão prejudicado apresentar recursos à União exigindo os dados. Quem quisesse, que esperasse acabar o estado de calamidade pública, no dia 31 de dezembro de 2020, para reapresentar as perguntas à União, somente em 2021. Um apagão completo na LAI por nove meses, em que o sigilo seria a regra e a transparência, exceção. 

De tão absurda, a MP 928 foi prontamente questionada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, três dias depois, em 26 de março, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, suspendeu os efeitos da medida provisória até a votação da medida no Congresso. 

“O artigo impugnado pretende transformar as exceções – sigilo de informações – em regra, afastando a plena incidência dos princípios da publicidade e da transparência”, argumentou Moraes ao negar a vontade de Bolsonaro. Mas… e se ele tivesse vencido o princípio democrático da publicidade? O que representaria esse apagão em números? 

De abril a dezembro de 2019, 47 mil cidadãos protocolaram 104 mil pedidos de informação ao Governo Federal. E como, desde que entrou em vigor, em 2012, a LAI bate recorde de demandas um ano depois do outro, a tendência seria que este número fosse ainda maior em 2020. Não é pouca gente. Nem é razoável o impacto de um apagão desses no controle social da população sobre os governos. Ou combina com uma democracia ignorar os 425 pedidos requisitando dados sobre desmatamento no Brasil feitos ano passado, de abril a dezembro? Num deles, o governo admite que reduziu em 20% as operações de fiscalização dentro da Amazônia Legal de janeiro a outubro de 2019 em relação ao ano anterior. Imagine, então, o que tinha no meio dos 1.225 pedidos relacionados à mineração, 2.038 sobre populações indígenas, 117 sobre tráfico de animais e 66 sobre transgênicos. 

Mesmo sem conhecer uma a uma dessas solicitações, provavelmente, muitas informações chegaram até você pelos jornalistas, cientistas e organizações da sociedade civil que utilizam a LAI para se aprofundar em temas de interesse público. Foram essas as classes que gritaram contra a medida provisória, assinando em conjunto a nota “Só venceremos a pandemia com transparência”, num esforço capitaneado pela Associação Brasileira dos Jornalistas Investigativos (Abraji). 

Nós, da agência de notícias Livre.jor – especializada em reportagens feitas com dados públicos – fomos uma das 60 entidades que endossaram o documento, ao lado da Abraji, da agência Fiquem Sabendo, da Artigo 19, da Transparência Brasil, da Justiça Global e do Instituto Vladimir Herzog, por exemplo. 

Não conseguimos sequer imaginar como 2019 teria sido sem essas 104 mil solicitações via Lei de Acesso à Informação. Então, já conseguem imaginar quanto 2020 perderia em transparência pública se o STF não tivesse brecado a arbitrariedade? Por pressão da sociedade civil, nunca saberemos qual teria sido o estrago da canetada de Jair Bolsonaro. Melhor assim, mas não dá para relaxar. 

Antes mesmo do novo coronavírus, de abril a dezembro de 2019, o Governo Federal foi obrigado a responder 97 pedidos de informação sobre gripe, 101 sobre pneumonia, 111 sobre leitos de UTI e 1.890 relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Isto é informação de interesse público, que não pode ser retirada de circulação no meio de uma crise de saúde pública. Só venceremos a pandemia com transparência. 

José Lázaro Jr. é jornalista da agência Livre.jor. 

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