O Legado de Bruno Pereira e Dom Phillips

Por Mayala Fernandes

 

Bruno da Cunha Araújo Pereira (41) e Dominic Mark Phillips (57) foram vistos pela última vez no dia 5 de junho, enquanto se deslocavam da comunidade ribeirinha de São Rafael para a cidade de Atalaia do Norte (AM).

O indigenista brasileiro e o jornalista britânico viajavam juntos de barco pela região do Vale do Javari, localizada próxima à fronteira com o Peru e a Colômbia, que abriga a Terra Indígena Vale do Javari, a segunda maior do país, com mais de 8,5 milhões de hectares e o maior número de indígenas isolados ou de contato recente do mundo.

Eles se encontraram na cidade de Atalaia do Norte no dia 1º de maio. Bruno Pereira chegou algumas semanas antes para fazer reuniões com lideranças indígenas sobre a proteção do território. Dom Phillips tinha o intuito de entrevistar indígenas e ribeirinhos para um novo livro.

O trajeto percorrido pela dupla é considerado simples. Diariamente, dezenas de amazônidas, inclusive idosos e crianças, traçam o mesmo caminho. Bruno e Dom foram emboscados e mortos no mesmo dia em que desapareceram. Os corpos foram resgatados dez dias após o registro do desaparecimento. Até o momento, oito pessoas estão sendo investigadas por possível participação no duplo assassinato e ocultação dos cadáveres. Três suspeitos estão presos: Oseney da Costa de Oliveira, conhecido como Dos Santos; Jefferson da Silva Lima e Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como Pelado.

 

Bruno Pereira foi o maior indigenista da sua geração

Bruno Pereira era considerado um dos maiores especialistas em indígenas que vivem em isolamento no Brasil. Foto: The Guardian

Bruno da Cunha Araújo Pereira, 41, era considerado um dos maiores especialistas em indígenas que vivem em isolamento no Brasil. Nos últimos anos, o indigenista atuava como consultor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). O local é conhecido por ser palco de conflitos típicos da Amazônia como tráfico de drogas, pesca e garimpos ilegais, e corte e roubo de madeira.

Nascido e criado em Pernambuco, Bruno tinha dois irmãos e era filho de um casal de paraibanos que veio morar em Recife. O indigenista era casado com a antropóloga Beatriz Matos, que conheceu durante uma viagem pela Amazônia. Juntos, tiveram dois filhos, um de dois anos e outro de três. Bruno deixa também um terceiro filho, de 16 anos, fruto de outro relacionamento.

“Conheci meu marido, Bruno Pereira, em 2010, quando ele era coordenador regional da Funai em Atalaia do Norte […] Conversamos rapidamente e gostei do sotaque pernambucano e do jeito debochado dele. Anos depois nos reencontramos e vivemos uma paixão avassaladora. Deixei para trás minha vida carioca e fui morar com ele num sítio perto de Atalaia do Norte”, diz Beatriz em depoimento a Lia Hama para a Revista Piauí.

Quando jovem, estudou no antigo colégio Contato, no centro da capital pernambucana, onde era conhecido como “Bruno Cunha” ou “cabeça”, apelido dado pelos colegas. Foi nesse colégio que se formou no ensino médio, em 1998. “Popular, extrovertido e dono de uma risada espalhafatosa, o Bruno daqueles tempos já demonstrava um espírito de liderança e inquietude. Sua coragem, hoje conhecida internacionalmente, já se revelava nas entrelinhas daqueles anos felizes entre 1996 e 1998”, descreveu o jornalista André Duarte, colega de escola de Bruno, nas redes sociais. Ingressou na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 2000, no curso de Jornalismo, mas, segundo colegas, perdeu o interesse pela área e acabou deixando a universidade em 2003.

Após desistir da formação em Jornalismo, trabalhou por um período no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ainda na cidade de Recife. Mas nutria o sonho de trabalhar na Amazônia, quando conseguiu trabalho no programa ambiental da Usina Hidrelétrica de Balbina e foi morar na região amazônica.

Em 2010, ingressou na Fundação Nacional do Índio (Funai) por meio de concurso público, um dos últimos promovidos pelo órgão e, em 2012, mudou-se para Atalaia do Norte, mesma região onde foi visto pela última vez.

São muitas as memórias que Bruno deixou em Atalaia. Amava o caldo de mocotó servido em um pequeno restaurante de madeira do “seu” Rosedilson, onde se alimentava e ouvia música sertaneja.

O indigenista estava ajudando a organizar equipes de vigilância indígenas para a denúncia de crimes ambientais. Foto: Reprodução/Twitter

Além de boa comida, Bruno também apreciava o futebol. Era torcedor do Sport de Recife (PE) e sempre assistia aos jogos ao lado de Rosedilson. “Ele subia esta rua do porto e perguntava se o Sport estava jogando, se ia jogar. Quando tinha jogo, pedia para botar no canal que tava passando o jogo, e uma cerveja”, conta Rosedilson Salvador, em entrevista para a Agência Pública.

Na cidade, foi coordenador regional do Vale do Javari, mas deixou o cargo em 2016 após um intenso conflito registrado entre povos isolados da região. Em 2018, o indigenista tornou-se coordenador-geral de Índios Isolados e de Pouco Contato da Funai, quando organizou a maior expedição dos últimos 20 anos para contato com esses indígenas.

Foi nesse momento que Bruno acabou exonerado do cargo, logo após coordenar uma operação contra garimpeiros ilegais no Vale do Javari. Durante a fiscalização, foram destruídas cerca de 60 balsas de extração ilegal de ouro.

“Bruno estava fazendo um trabalho muito sério e era reconhecido nacional e internacionalmente; ele realizou uma série de ações coordenadas, e acho que foi o estopim para isso”, contou Beatriz Matos, esposa de Bruno, em entrevista para o programa Fantástico.

Apesar da exoneração, ele não se afastou das causas indígenas. A partir de 2020, tornou-se consultor da Univaja e voltou a frequentar Atalaia, ajudando na organização de equipes de vigilância indígena.

“[Bruno] era um escudo dos povos indígenas, porque fazia o enfrentamento aos invasores. Ele deu a vida para que houvesse a continuidade da proteção do nosso território. A morte dele é um símbolo para que a gente continue a nossa luta”, declarou Manoel Chorimpa, amigo de Bruno, em entrevista para o site UOL.

Chorimpa relata ainda que, em seu último encontro com Bruno, o indigenista estava preocupado com as ameaças de morte que vinha sofrendo desde a época em que deflagrou operações com garimpeiros e pescadores que entram na reserva.

O pesquisador Aiala Couto, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz ainda ao site UOL que o ex-coordenador da Funai “era visto como um inimigo em potencial por quem tinha interesse em explorar a área. O governo deveria dar garantias para que a Funai pudesse trabalhar com segurança, mas virou as costas para o Bruno, que voltou para a região em uma condição de vulnerabilidade, como convidado da associação”.

Beatriz Matos, mulher do indigenista, disse ainda em depoimento à Revista Piauí que ficou “com muita raiva quando disseram que Bruno estava numa ‘aventura’ quando sofreu a emboscada. Ele não era nada irresponsável, pelo contrário, sempre foi muito cauteloso”.

O corpo de Bruno Pereira foi velado em Recife entre cânticos e discursos em defesa dos povos indígenas e do meio ambiente. Um grupo de indígenas da etnia Xukuru viajou cerca de 200 quilômetros para prestar tributo ao indigenista.

“Viemos aqui para homenagear nosso guerreiro, o guerreiro Bruno, que hoje se torna um mártir por todos nós, pela causa indígena”, disse Marcos Luidson, líder da comunidade Xukuru de Pernambuco, no funeral, segundo a Reuters.

O corpo do indigenista foi velado entre cânticos e discursos em defesa dos povos indígenas. Foto: Arnaldo Sete, Marco Zero Conteúdo

Dom Phillips, o jornalista apaixonado pela Amazônia

O jornalista era apaixonado pelo Brasil e participava de expedições no Vale do Javari. Foto: Evandro

“Ele poderia viver em qualquer lugar do mundo, mas escolheu viver aqui”, disse a esposa de Dom, Alessandra Sampaio, em apelo para que as autoridades brasileiras, realizassem “ações urgentes” para localizar o marido e o indigenista Bruno.

Dom Phillips, 57, morava no Brasil há 15 anos. De acordo com amigos e conhecidos, era um homem cativante, com uma rara modéstia. Tinha um grande senso de humor e se interessava por tudo.

Apesar de já ter conhecido todos os cantos do mundo, Dom era apaixonado pelo Brasil, fez desse país seu lar e sua razão de viver. Suas últimas palavras demonstram paixão. Em sua conta do Facebook, cinco dias antes de seu desaparecimento, Dom escreveu: “Amazônia, sua linda.”

O jornalista cresceu em Bebington, cidade a 8 quilômetros ao sul de Liverpool, na Inglaterra. Era filho de um casal de professores e tinha uma irmã gêmea e um irmão. Durante a juventude, Phillips demonstrava interesse por música e atividades ao ar livre, chegando até a criar uma série de bandas com seu irmão e amigos.

Estudou no St Anselm ‘s College, em Birkenhead, onde ganhou uma bolsa de estudos. Depois, estudou literatura durante alguns meses na Hull University. Por fim, iniciou os estudos na Middlesex Polytechnic, mas saiu sem diploma para viajar pelo mundo, morando em países como Israel, Grécia, Dinamarca e Austrália.

Começou a carreira jornalística na revista Mixmag, na década de 1990, cobrindo o cenário da música eletrônica. Foi, inclusive, a música que o atraiu ao Brasil, influenciado por colegas da área musical. Em 2009, dois anos após se mudar para o Brasil, publicou o livro “Superstar DJ Here We Go! The Rise and Fall of the Superstar DJ”, uma história de vanguarda da cultura club dos anos 90.

Inicialmente, ele se instalou em São Paulo e, mais tarde, morou no Rio de Janeiro, onde aproveitava as horas livres para andar de bicicleta e fazer stand-up paddle. Havia se mudado há poucos meses para Salvador, na Bahia, estado de sua esposa, Alessandra Sampaio.

O jornalista britânico trabalhou como correspondente desde que chegou ao Brasil, em 2007. Escrevia reportagens para dezenas de jornais do mundo todo, sobretudo, para o The Guardian.

Phillips também já escreveu sobre o desmatamento no Brasil, liderando uma investigação sobre fazendas de gado de grande escala estabelecidas em terras de floresta desmatada. A cobertura jornalística que ele fez sobre o desmatamento ilegal foi indicada ao Prêmio Gabo e finalista do Prêmio Vladimir Herzog naquele mesmo ano.

Dom Phillips desapareceu, juntamente com Bruno Pereira, enquanto fazia uma expedição para coletar dados para o livro “Como salvar a Amazônia?”. O jornalista havia recebido uma bolsa da Alicia Patterson Foundation, iniciativa que selecionou nove outros profissionais da área que se dedicam ao tema, para a produção do livro.

Colaborador do The Guardian, Dom cobria temas ambientais, incluindo os conflitos fundiários e a situação dos povos indígenas. Foto: João Laet AFP Getty Images

Dom e Bruno se conheceram em 2018, quando realizaram uma expedição ao Vale do Javari, muito semelhante à iniciada no dia 1º de maio, com o propósito de de localizar indígenas da etnia Korubo.

O jornalista britânico era um grande conhecedor da Amazônia e tinha experiência na cobertura completa deste tema, com destaque para os conflitos fundiários e a situação dos povos indígenas.

“Meu irmão foi morto porque tentou contar ao mundo o que estava acontecendo com a floresta tropical”, disse Sian Phillips, irmã do jornalista, durante o funeral que ocorreu na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. “Sua missão colidiu com os interesses de indivíduos que estão determinados a explorar a Floresta Amazônica.”

No funeral, também houve uma homenagem da esposa de Phillips aos indígenas sobre os quais seu marido estava escrevendo quando foi assassinado.

“Gostaria de expressar minha eterna gratidão aos povos indígenas, que estão conosco como leais guardiões da vida, da justiça e de nossas florestas”, afirmou Alessandra Sampaio durante a cerimônia, segundo a AP News.

 

Repercussão internacional

O desaparecimento e a posterior confirmação das mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips causaram comoção internacional. Foram publicadas reportagens e editoriais na imprensa de todo o mundo.

Segundo declarou ao Jornal Estado de São Paulo, o PhD e especialista em pesquisas de opinião e redes sociais, Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, entre os dias 5 e 15 de junho, foram mais de 18 milhões de menções a Dom e Bruno em plataformas digitais de mais de 100 países.

O caso também mobilizou protestos em várias cidades do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos, todos com o apelo pela resposta à pergunta “Onde estão Bruno Pereira e Dom Phillips?”.

Os principais políticos do Reino Unido, em reunião da Câmara dos Lordes, manifestaram profunda preocupação com o desaparecimento de Dom, além de oferecerem ajuda ao Brasil nas buscas. A porta-voz da ONU Direitos Humanos, Ravina Shamdasani, também se pronunciou, por meio de nota, e exigiu investigações “imparciais, transparentes e exaustivas”.

A repercussão na mídia internacional ganhou ainda mais destaque depois que o pescador Amarildo Oliveira, conhecido como Pelado, confessou os assassinatos. Veículos como The Guardian, The New York Times, El Clarín, Le Monde Diplomatique, El País e Financial Times noticiaram o caso. O jornal The Guardian, que tinha Dom como correspondente há anos, dedicou quase metade da capa da versão impressa para falar das mortes. Além de divulgar os fatos e novas informações relacionados à tragédia na Amazônia, veículos internacionais também repercutiram as falas desastrosas do presidente Jair Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão sobre o caso.

Milhares de pessoas realizaram atos pedindo justiça. Foto: André Penner AP
A arte com o rosto de Bruno Perreira e Dom Phillips se tornou símbolo da luta por justiça Foto: Nelson Almeida AFP Getty Images
As mortes de Dom e Bruno causaram repercussão internacional e geraram manifestações. Foto: Antonio Lacerda EFE

Na mais recente e impactante reação internacional, o Parlamento Europeu aprovou no dia 7 de julho, por 362 votos, uma resolução inédita que condena os assassinatos de Bruno e Dom Dom e exige que as autoridades brasileiras adotem medidas emergenciais para prevenir violações de direitos humanos na região, proteger o meio ambiente e a vida de líderes indígenas. Segundo o eurodeputado Miguel Urban, “a política de Bolsonaro é nociva aos direitos humanos e está acabando com a Amazônia”, relatou ao jornal O Globo. As medidas podem também impor restrições aos acordos comerciais com o Brasil, caso nada seja feito.

“Dom Phillips era consciente em relação ao desastre que marca a atual política ambiental brasileira. Mesmo desligado da Funai, Bruno Pereira prosseguiu sua luta em defesa dos povos indígenas da Amazônia. Não são vítimas isoladas, mas parte de um amplo e organizado sistema para supressão das bases fundamentais para a existência dos povos indígenas, em todas as suas dimensões, em nome de um desenvolvimentismo predatório e míope”, declara Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, no Le Monde Diplomatique Brasil.

No século 21, mais de 650 ambientalistas foram assassinados no Brasil, segundo o relatório “A última linha de defesa”, realizado desde 2002 pela ONG Global Witness. Os dados colocam o país como o local mais perigoso para defensores do meio ambiente.

Em 2020, o Brasil foi o quarto país que mais matou ativistas ambientais. Foram 20 assassinatos, ficando atrás apenas da Colômbia (65 mortes), México (30) e Filipinas (29).

A Global Witness afirma que o número de registros nos próximos anos pode ser ainda maior. “Em alguns países, a situação dos defensores é difícil de medir, já que as restrições à liberdade de imprensa, ou onde o monitoramento independente de ataques não está ocorrendo, podem levar a subnotificações”, alerta.

Bruno Pereira e Dom Phillips somam-se às mortes de Chico Mendes, Dorothy Stang, cacique Emyra Wajãpi e Paulo Paulinho Guajajara, e tantos outros desconhecidos indígenas que morreram simplesmente por amar a floresta e defender o Patrimônio Público Natural.

Enquanto o Estado brasileiro não estiver presente de fato na Região Amazônica, o povo brasileiro não será soberano daquela parte do planeta. Infelizmente, a barbárie e o crime são hoje os verdadeiros senhores desta imensa área.

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