Na noite do dia 21 de dezembro de 2021 a Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprovou, sem um único voto contrário, apenas registro de 3 abstenções, o PL 0472.7/2021, que altera a Lei n 14.675, de 2009, que “Institui o Código Estadual do Meio Ambiente e estabelece outras providencias.
O PL foi fruto do trabalho de uma Comissão Mista Especial, a qual direcionou a determinados setores da sociedade e do governo estadual uma solicitação para apresentação de sugestões para aprimoramento da lei estadual. Esta Comissão estabeleceu um cronograma de 8 audiências públicas, as quais ocorreram no curto intervalo dos dias 28 de outubro e 18 de novembro, sendo que a última delas, prevista para ser realizada em Florianópolis, foi inexplicavelmente transferida de ultima hora para a cidade de Joinville. No período das audiências a Comissão não havia ainda concluído o trabalho, de sorte que nelas não foi apresentado e debatido o PL que seguiu para votação no dia 21 de dezembro.
O direcionamento indevido, a falta de publicidade e de discussão previa do PL, a deliberada exclusão de setores importantes para a temática ambiental, como a comunidade acadêmica e organizações ambientalistas, a inclusão do PL para apreciação na 129 sessão legislativa ordinária de 21 de dezembro, a qual continha na Ordem do Dia 40 projetos para votação, são fatores que por si só revelam o quão comprometido ficou este processo de revisão de uma norma extensa e de grande relevância para a sociedade catarinense. O modo atropelado com que se deu o processo ficou explicitado quando o Deputado Jose Milton Scheffer solicitou inversão de pauta para antecipar a votação do PL 0472.7/202, pelo adiantado da hora, e mais ainda quando o Deputado Silvio Drevek, logo que foi aberta a discussão do PL, informa que “precisa entender melhor a proposta, ter conhecimento da mesma”. Ou seja, mesmo para os deputados o prazo para conhecimento e avaliação da proposta foi exíguo. Ao tentar esclarecer o Deputado Milton Hobus destaca que este é um projeto de grande importância, que vai mudar Santa Catarina, e que a legislação ambiental não pode ser um “entrave para o desenvolvimento”. Complementa a fala dizendo que o PL traz avanços históricos, citando como exemplos a licença autodeclaratória e o projeto preservacionista da araucária, ressaltando que este é um projeto do legislativo. E a sequência dos debates apenas confirmou isso, com falas genéricas ressaltando a importância do processo e parabenizando o trabalho da Comissão Mista Especial. O Deputado Cobalchini, demonstrando completo desconhecimento da legislação, argumenta que, caso prevalecesse no Estado a Lei da Mata Atlântica, Santa Catarina viraria uma grande APP, e que o PL avança muito na preservação, inclusive das espécies ameaçadas de extinção, defendendo que o proprietário que tenha mais de 20% de sua área preservada merece receber um prêmio. Para o ele o referido prêmio seria a possibilidade de desmatar o excedente. Deputado Fabiano da Luz, que foi membro da Comissão Mista Especial, parabeniza a excelência do trabalho da mesma, defendendo que a lei precisa mudar para agilizar licenças ambientais. Justifica sua abstenção na votação como argumento de que não aprovar o PL é posicionar-se contra o pequeno proprietário rural. Deputado Ivan Naatz afirma que com a aprovação do PL o Estado de Santa Catarina passa a se consolidar como “marco nacional na pauta ambiental”, e o Deputado Jose Milton Scheffer afirma que com a aprovação do PL teremos em Santa Catarina a lei mais atual do país, e que servirá para inspirar outros estados, avaliando que o licenciamento ambiental por compromisso vai acelerar a economia, trazendo grande contribuição para o Estado. Não obstante os elogios, poucos pontos de mérito das mudanças propostas chegaram a ser debatidos. Das emendas apresentadas apenas a que tentava manter a competência da Policia Ambiental para realizar autuação de infrações ambientais foi defendida pelo Deputado Cel. Mocelin. Sem maior aprofundamento no debate a emenda foi rejeitada.
A despeito das falas desconexas dos deputados, a proposta deixou de corrigir falhas graves do Código Estadual do Meio Ambiente e inseriu mudanças que tornam o mesmo ainda mais frágil e questionável sob vários aspectos. A seguir destacamos algumas das disposições do texto aprovado que fragilizam enormemente a política ambiental no Estado:
1- A Polícia Militar Ambiental – PMA, teve suas atribuições relativas a infrações ambientais limitadas a emitir Notificação de Fiscalização e encaminhá-lo ao IMA ou órgão ambiental federal ou municipal responsável pela instrução do correspondente processo administrativo, conforme o caso; não poderá emitir auto de infração.
2- Equívocos técnicos e ilegalidades já constantes da versão anterior do Código não foram corrigidos, como a definição de campos de altitude, que em Santa Catarina, arbitrariamente e sem qualquer fundamentação técnica ou legal, passam a ser considerados tão somente para esta tipologia vegetacional os campos que estejam em locais acima de 1.500 (mil e quinhentos) metros. Essa previsão conflita com a definição já estabelecida pela Lei da Mata Atlântica, e assim, segundo o § 4º do Art. 24 da CF de 88, deveria ter sua eficácia suspensa.
3- Pelo novo texto novas atividades de utilidade pública e de interesse social poderão ser definidas no âmbito do processo de licenciamento ambiental. A nova previsão gera conflito direto com o disposto na Lei Federal nº 12.651 de 2012, que remete especificamente a ato do Chefe do Poder Executivo federal esta competência. A nova previsão gera elevado grau de insegurança jurídica.
4- O texto aprovado altera o critério para caracterização da pequena propriedade ou posse rural, passando a considera para tal a área que integra cada título de propriedade ou de posse, ainda que confrontante com outro imóvel pertencente ao mesmo titular. Essa previsão abre a possibilidade de desmembramentos, viabilizando que qualquer proprietário rural, mesmo um latifundiário, se torne um “pequeno proprietário rural”.
5- Ao prever que o licenciamento ambiental independe da emissão da certidão de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano emitida pelos Municípios, bem como de autorizações e outorgas de órgãos não integrantes do SISNAMA, o texto aprovado deixa de observar o princípio constitucional da eficiência. Suprimir estas exigências pode comprometer o processo de licenciamento, ou mesmo anulá-lo, com prejuízos para o empreendedor.
6- O licenciamento ordinário através da Licença Ambiental por Compromisso (LAC), passa agora a ser concedido eletronicamente, para atividades que sejam enquadradas, cumulativamente, como de pequeno ou médio porte e de pequeno ou médio potencial poluidor degradador. O comprometimento da garantia constitucional de um ambiente equilibrado e saudável fica certamente ampliado com tal previsão, considerando que com o modelo até hoje vigente, com avaliação prévia do órgão ambiental competente, já se registra grande número de problemas nos processos de licenciamento.
7- Pelo texto aprovado teremos agora a figura das atividades estratégicas para análise de licenciamento ambiental, incluindo dentre elas as atividades agrossilvopastoris, e a construção de silos ou similares para armazenagem de grãos. A caracterização destas atividades como estratégicas, além de infundada, revela o grau de direcionamento indevido observado no processo de revisão da lei, com claro privilégio a setores específicos. Isso é ainda reforçado com a caracterização como de interesse social das atividades rurais de produção de gêneros alimentícios, vegetal e animal; e aquelas relacionadas à apicultura.
8- O texto aprovado altera a lei federal de Crimes Ambientais, prevendo agora que, quando ocorrer corte de vegetação, sem a devida autorização ambiental, em área passível de corte, o mesmo poderá ser compensado em outra área. Necessário lembrar o corte de vegetação, sem a devida autorização, caracteriza crime ambiental, com penalidades já previstas na lei federal. Mais um ponto de ampliação da insegurança jurídica.
9- A Lei Estadual já tinha problemas de legalidade quando adentrava na definição de vegetação primária e secundária, competência expressamente remetida ao CONAMA pela lei da Mata Atlântica. O problema foi ampliado no novo texto, que agora altera também os critérios de avaliação dos estágios sucessionais da vegetação secundária.
10- Outro vicio de legalidade insanável é detectado no texto quando o mesmo prevê que fica autorizado, mediante declaração e acompanhamento técnico por profissional habilitado, o uso alternativo do solo em áreas rurais consolidadas conforme declaradas no Cadastro Ambiental Rural- CAR, bem como a supressão vegetativa de espécies nativas, desde que não gerem material lenhoso. Conforme a Lei da Mata Atlântica, mesmo a vegetação secundária em estágio inicial precisa de autorização para supressão. Contudo o problema é mais sério, pois dentre as tipologias vegetacionais que integram a Mata Atlântica em Santa Catarina, encontramos formações não lenhosas, como os Campos de Altitude e a restinga herbácea-subarbustiva, por exemplo. O texto aprovado permite entender que nestes casos, independente de tratar-se de vegetação primária ou secundária, a supressão já estaria autorizada.
11- Esse conflito é repetido, prevendo a nova lei que o uso alternativo do solo, em áreas rurais consolidadas, que não geram material lenhoso para sua supressão e ou conversão, não necessitam de autorização de supressão vegetativa, desde que comprovadas através de declaração técnica de Uso e Ocupação do Solo, emitida por profissional habilitado.
12- Ao prever a permissão de supressão de árvores isoladas de espécies nativas, constante ou não da listagem de espécies ameaçadas de extinção, o texto aprovado não apenas gera conflito com a Lei da Mata Atlântica como também com a própria constituição da República. Se uma espécie esta reconhecida como ameaçada de extinção, por força de determinação constitucional, o Poder Público é incumbido de protege-la, coibindo medidas que possam provocar a extinção da espécie (Art. 225, § 1º, VII, da CF-88). O texto aprovado faz o inverso, atuando o Estado para agravar o risco de extinção.
13- Ao prever que a regularização ambiental promovida pela adesão ao PRA admitirá a substituição das atividades atualmente realizadas, o texto conflita com a lei federal 12.651 que fala em manutenção das atividades, não abrindo assim margem para sua substituição.
14- Outro conflito com a lei federal 12.651 surge quando o texto traz a previsão de que não são consideradas APPs, as áreas cobertas ou não com vegetação nas faixas marginais de cursos d’água não naturais, devido à realização de atividades de canalização, tubulação ou incorporação de cursos d’água a sistemas produtivos ou de drenagem urbana ou rural. A lei federal prevê como APP as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros. Ou seja, a norma nacional expressamente definiu as possibilidades de exclusão, limitando-a aos cursos efêmeros. Temos assim outra previsão que tende a gerar maior conflito e insegurança jurídica.
15- O texto aprovado retrocede ao patrimonialista Código Florestal de 1934, alterando o regime de APP, condicionando a definição de novas APPs “à prévia e justa indenização dos proprietários ou possuidores dos imóveis abrangidos”.
16- O texto prevê que as medidas das faixas de proteção poderão ser modificadas no âmbito do PRA, em razão das peculiaridades territoriais, climáticas, históricas, culturais, econômicas e sociais da região onde está situado o imóvel a ser regularizado, mediante recomendação técnica, e também que os Municípios poderão, através do Plano Diretor ou de legislação específica, delimitar as áreas urbanas consolidadas em seus respectivos territórios, disciplinando os requisitos para o uso e ocupação do solo e estabelecendo os parâmetros e metragens de APPs a serem observados em tais locais. Tais previsões do Código Estadual geram conflito direto com lei 12.651 que, em seu Art. 4º, estabelece as delimitações de Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, e mesmo para a regularização ambiental mediante adesão ao PRA, já determina extensões mínimas que deverão ser recuperadas, não cabendo sua modificação no âmbito do PRA.
17- Ampliando os conflitos com a Lei 12.651, o texto aprovado passa a determinar que mediante requerimento do proprietário, o órgão ambiental competente autorizará a realocação da Reserva Legal existente no imóvel para outra área, e ainda, que o PRA poderá estabelecer outras formas de cumprimento das obrigações relativas à Reserva Legal. A excepcionalidade vira regra na legislação catarinense.
18- Outra grave falha da lei catarinense que deixou de ser corrigida na revisão é a previsão de que unidades de conservação somente poderão ser criadas por intermédio de lei. Tal dispositivo confronta a previsão do Art. 225, § 1º, III, da CF-88. A incumbência de criar espaços protegidos é remetida ao Poder Público, não restrito, portanto, ao Poder Legislativo.
19- A instituição do chamado Projeto Conservacionista da Araucária (PCA), dedicado a reversão do processo de extinção da espécie Araucária angustifolia (Pinheiro Brasileiro) no território Catarinense é de uma ilegalidade e contradição monstruosas. Segundo o texto aprovado o manejo florestal sustentável (leia-se corte de pinheiro em remanescente natural) é a atividade central do Projeto Conservacionista da Araucária (PCA), constituído pela administração planejada e não degradante do uso dos recursos florestais, com base em técnicas científicas consolidadas. O Poder Público é incumbido de proteger a flora, vedando praticas que possam provocar extinção de espécies (Art. 225, § 1º, VII, da CF-88). A Araucaria angustifolia é uma espécie constante da lista oficial de espécies da flora ameaçadas de extinção, e a proposta do Projeto Conservacionista da Araucária (PCA) tão somente propõe a abertura do manejo florestal sustentável como atividade central. O Art. 11 da lei 11.428 (Lei da Mata Atlântica) estabelece que mesmo o corte da vegetação primária ou secundaria nos estágios avançado e médio ficam vedados quando a mesma abrigar espécie da flora ameaçada de extinção. Isso significa que mesmo o corte de outras árvores numa formação onde ocorre a Araucaria angustifolia implicaria em inobservância do dispositivo legal. Autorizar o corte, ainda que sob o título pomposo de manejo florestal sustentável, mostra-se flagrantemente ilegal e inconstitucional. Cumpre lembrar que o IBAMA, em sentença judicial transitada e julgada, foi condenado a abster-se de aprovar planos de manejo com espécies ameaçadas de extinção, uma vez que não conseguiu apresentar dados técnicos confiáveis que garantissem a aludida sustentabilidade desse modo de exploração florestal. O Projeto Conservacionista da Araucária (PCA) igualmente não apresenta qualquer elemento técnico que possa minimamente suprir essa deficiência. Esse conflito é ampliado com a previsão de competência remetida ao CONSEMA para estabelecer as condições do manejo florestal sustentável do palmito (Euterpe edulis), da bracatinga (Mimosa scabrella), da araucária (Araucaria angustifolia) e da erva mate (Ilex paraguariensis), no Estado de Santa Catarina. Condições para o manejo de espécies da Mata Atlântica estão definidas na lei federal 11.428/2006, não cabendo ao CONSEMA estabelecer regramento distinto por força da observância do princípio constitucional da legalidade. A norma especial, por sua vez, veda o corte de vegetação que abriga espécies da flora ameaçadas de extinção (Art. 11), e o texto aprovado inclui espécies nessa condição, como é o caso da Araucaria angustifolia e Euterpe edulis.
20- Ao prever competência plena ao municípios para os pedidos de supressão florestal quando situados em zona urbana, zona de expansão urbana e núcleos urbanos informais, estes ainda que situados em área rural, independentemente de convênio com o órgão ambiental estadual, considerando-se automaticamente delegada a competência quando a municipalidade estiver habilitada para licenciamento ambiental, o texto aprovado gera conflito direto com a Lei da Mata Atlântica: segundo disposto na Lei da Mata Atlântica (Art. 14, § 2º) a competência municipal se aplica para autorizar a supressão de vegetação no estágio médio de regeneração situada em área urbana, com anuência previa do órgão ambiental estadual.
A Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) ressalta que todos os pontos aqui destacados como conflituosos foram objeto de emendas para aprimorar o texto do Código Estadual do Meio Ambiente, restando todas rejeitadas sem qualquer discussão durante a votação do PL 0472.7/2021. Com a aprovação o texto segue para a avaliação do Governador do Estado de Santa Catarina, quando então tais previsões poderão ser vetadas, resguardando a devida consonância do Código Estadual do Meio Ambiente com a legislação ambiental nacional vigente. A RMA procura com este relato dar maior publicidade ao processo e ciência ao público e autoridades dos dispositivos conflituosos que persistem com a aprovação do PL, procurando com isso contribuir na adoção de medidas que possam aprimorar a lei. Santa Catarina precisa e merece uma lei que efetivamente faça jus ao titulo de Código Estadual do Meio Ambiente.
Brasília, 21 de dezembro de 2021.
João de Deus Medeiros – Coordenador Geral
Adriano Wild – Coordenador Institucional
O Observatório de Justiça e Conservação faz parte da Rede de ONGS da Mata Atlântica
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