Acervos de importância geológica no Paraná não recebem a devida atenção do governo do Estado

Crédito: Funabi - José João Bigarella coletou toneladas de rocha e amostras geológicas pelo mundo durante a vida, com intenção de criar o museo

Bruna Bronoski
Observatório de Justiça e Conservação

Quase quatro toneladas de filmes, arquivos e relíquias de grandes produções audiovisuais, como as de Glauber Rocha, se perderam no incêndio do último mês na Cinemateca Nacional. Três anos antes, o Museu Nacional no Rio de Janeiro ardeu em chamas mais de 20 milhões de itens históricos, entre obras de arte, fósseis e múmias. Em 2015, o Museu da Língua Portuguesa também pegou fogo, sendo reinaugurado apenas no último mês.

“Um país que não investe e mantém sua memória está fadado ao subdesenvolvimento”, diz o historiador Renato Mocellin. “Infelizmente, esse é um problema brasileiro e paranaense”. No estado, pelo menos três acervos perderam investimentos e foram distribuídos para outras instituições.

Acervo João José Bigarella

Crédito: Nuno Papp – Amostras adquiridas para compor acervo do professor Bigarella foram doadas para Unicentro

Toneladas de fragmentos geológicos colhidos pelo professor João José Bigarella em várias partes do mundo ficaram mais de 10 anos parados numa estrutura que quase virou museu. Antes de falecer em 2016, o professor Bigarella acreditava que o projeto sairia do papel, como o governo estadual um dia prometeu. O “quase” acabou em julho deste ano.

O museu nunca foi inaugurado. A estrutura de 2.800 m² construída dentro do Parque Estadual de Vila Velha para receber públicos de escolas, universidades, turistas e interessados na formação geológica do Paraná e do Brasil, pode até ser demolida.

O prédio foi construído em Vila Velha pela sua peculiaridade da formação geológica, conta Glaucon Horrocks, ex-presidente da Funabi, fundação que leva o nome do professor. “Sem parceria com o governo do Estado, o Ministério da Cultura não nos autorizou o funcionamento”, lembra Horrocks.

O Grupo Soul Parques ganhou a concessão do Parque Estadual de Vila Velha depois que a exploração de unidades de conservação pela iniciativa privada foi aprovada na Assembleia Legislativa do Paraná. Segundo a Funabi, não houve interesse da empresa em manter o acervo no local.

Depois de anos esperando um termo de parceria com o governo do Paraná, membros da fundação atenderam à determinação do Tribunal de Contas da União para sua retirada do parque.

Parte foi destinada à Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava, por recomendação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Dos cerca de 500 fragmentos, entre rochas e amostras, 30 foram para a universidade. Cadeiras de auditório, arquivos deslizantes e painéis de exposição também foram destinados.

Maria Carolina Stellfeld, geóloga e membro da comissão científica da Funabi, conta que para a Unicentro foram enviadas amostras compradas com fundo da Lei Rouanet. Outras, colhidas pelo próprio Bigarella em suas dezenas de expedições, foram levadas a uma propriedade da família e podem seguir para a Universidade Estadual de Ponta Grossa e para o Serviço Geológico do Estado, que são interessados no acervo.

“O museu teria um percurso desde a origem do universo, com posicionamento dos planetas em relação ao sol. Os visitantes saberiam como houve a separação do Gondwana [dos continentes África e América do Sul], a formação de Vila Velha, a deposição dessas rochas. Os painéis já estavam todos prontos, desenhados. Dá dó não usar este material todo”, comenta Stellfeld.

O material de trabalho do professor Bigarella, como martelos, machados e outras ferramentas podem ser expostos no prédio universitário que leva o nome dele, no Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná (UFPR), caso haja uma parceria entre a fundação e a instituição. O acervo do professor ainda contém mais de 3 mil fotos e vídeos de seus trabalhos pelo mundo.

Legado

crédito Funabi – José João Bigarella coletou toneladas de rocha e amostras geológicas pelo mundo durante a vida, com intenção de criar o museu

João José Bigarella foi geólogo, pesquisador e professor da UFPR. Esteve em vários países africanos e sulamericanos para realizar pesquisas geológicas de campo. Seus estudos têm referência internacional, uma vez que esteve à frente das pesquisas empíricas pioneiras para explicar a movimentação e separação dos continentes. Também contribuiu para estudos de deriva continental e geomorfologia do quaternário brasileiro. Foi reconhecido por várias instituições por seu intenso trabalho de pesquisa e educação ambiental.

Filha e membro da Comissão Científica da fundação, Mônica Maria Bigarella lamenta que o esforço do pai e de tantas pessoas depois dele tenha este desfecho. “O projeto do museu foi baseado em grandes estudos de todos os museus que ele percorreu para poder fazer uma síntese disso para o Paraná. Era o presente que ele queria dar ao Estado”.

Foram mais de 10 anos de espera, negociações, mudança de governos. Para Aristides Athayde, advogado e ambientalista, faltou interesse político para alocar o acervo. “Começou com o governador Requião, que não assinou o termo de parceria. Em seguida foram 8 anos de descaso do governo Beto Richa e agora o mesmo com Ratinho Jr. Nada foi feito”.

Acervo Mineropar

Outro acervo geológico paranaense também ficou espalhado pelo estado e até fora dele. A Mineropar, Serviço Geológico do Paraná, mantinha grandes amostras de rocha, resultado de estudos e retirada de fragmentos de rocha metamórfica, ígnea e sedimentar de vários municípios ao longo de anos.

Parte deste acervo foi depositada no estacionamento de um prédio alugado pelo estado ao lado do ITCG (Instituto de Terras, Cartografia e Geologia do Paraná). Segundo dois servidores do IAT que preferem não se identificar, os arquivos do acervo ficaram “jogados” ali sem o cuidado devido.

De acordo com Luciano Loyola, chefe da Divisão de Geologia do IAT, o acervo foi dividido em três partes. “Com a extinção da Mineropar, os testemunhos de sondagem [amostras de rocha retiradas a metros de profundidade da superfície] ficaram guardados num galpão em Araraquara, no interior de São Paulo, onde está um depósito do Serviço Geológico do Brasil”.

Além de Araraquara, parte do acervo da Mineropar foi destinado ao Viveiro do Guatupê, em São José dos Pinhais. Antes disso, o material ficava num laboratório em Curitiba para análise e consulta de pesquisadores.

O acervo da Mineropar para visitação de escolas foi levado ao Parque da Ciência Newton Freire Maia, em Pinhais. Mapas, globos e maquetes com atividades de mineração eram instrumentos didáticos para crianças e serviam de iniciação à importância do conhecimento sobre solo e formações geológicas. De acordo com Loyola, foi requisitada uma verba para alocar o acervo no mesmo nível de curadoria dos demais acervos do Parque da Ciência, o que ainda não ocorreu.

O Observatório de Justiça e Conservação considera inadequado o tratamento público reservado aos acervos. “O que está acontecendo mostra a pouca importância que o governo do Paraná dá à educação. É um descaso com o patrimônio público, com a herança cultural para as próximas gerações. Museus e acervos têm finalidades educacionais e é a educação que estamos deixando de lado”, afirma o diretor-executivo do OJC, Giem Guimarães.

Biblioteca do IAP

O antigo Instituto Ambiental do Paraná (IAP), hoje IAT, possui um acervo de livros que um dia foi público. Hoje os livros da Biblioteca do IAP ficam, segundo o IAT, disponíveis ao público digitalmente.

A Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Turismo informou em nota que “livros de conteúdo pedagógico e didático, de geologia, geografia e áreas correlatas estão à disposição para doação a bibliotecas que tiverem interesse”.

A nota também informou que os livros de conteúdo técnico estão disponíveis para consulta, com agendamento e supervisão, “por se tratarem de materiais históricos do Estado”.

O acervo do IAP ficou aos cuidados da bibliotecária Aimara Riva da Silva por 20 anos. Ela diz que o processo de descarte do acervo não é de hoje. “Parte do acervo já tinha sido doado ao ITCG, outra parte foi para a sede da Secretaria do Meio Ambiente [atual Sedest]. Cada vez foi diminuindo o número de estantes… até que o acervo sumiu”, recorda.

Dona Aimara descreve os documentos históricos, com aspecto antigo, todos registrados como patrimônio do Paraná. “Cada livro e documento era patrimoniado do Estado. Não dá só pra digitalizar, isso tudo é parte da história. Temos que separar a informatização da informação”, afirma a bibliotecária aposentada.

O historiador Renato Mocellin considera esta divisão um prejuízo. “Os investimentos podem ser canalizados de maneira mais efetiva e racional se o acervo de uma mesma temática está todo no mesmo lugar. A própria captação de recursos é mais difícil se o acervo estiver espalhado. Além disso, você precisa de cuidado profissional especial para cada acervo. Não dá só para amontoar os itens num prédio e abandoná-los”.

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