Observador de aves registra imagens raras de harpia selvagem e surpreende comunidade científica

Um gavião-real, cuja imagem faz parte do brasão da bandeira do Estado do Paraná, foi visto por acaso no município de Coronel Domingo Soares. Crédito: Francisco Hamada.

As fotos raras surpreenderam a comunidade de ornitólogos e técnicos de conservação brasileiros. É o primeiro registro fotográfico da harpia em vida livre no Paraná. As imagens, que entraram para a história, foram feitas no município de Coronel Domingos Soares pelo engenheiro agrônomo Francisco Herochi Hamada, que sempre gostou da natureza, em especial das aves. Hamada é o maior fotógrafo de aves do estado. Está em primeiro lugar em postagem no site Wikiaves, com registro de 1.277 espécies diferentes. Mesmo já tendo sido surpreendido tantas vezes pelas aves que registrou, contou que foi uma imensa surpresa avistar a harpia, a maior águia das Américas e que está criticamente em perigo, devido, principalmente, à perda do habitat e à complexidade de reprodução.

“Entrei para o birdwatching em 2013 e até hoje cultivo este hobby, com muito prazer. No dia 11 de abril, estava pescando de barco no Rio Iratim, com meu filho Rafael e o amigo Fabiano Baniski, quando, de repente, ela pousou numa palmeira, às margens do rio. Como sempre carrego minha máquina, de imediato comecei a fotografá-la. Num primeiro momento, fiquei incrédulo, muito emocionado.” Francisco lembra que a ave ficou pousada de costas por alguns minutos. Depois virou-se de frente e permaneceu mais algum tempo observando o grupo.

“A harpia voou para outra árvore, distante cerca de 500 metros, ficou mais alguns minutos e voou para longe. Naquele momento, eufórico, não imaginava a importância e a repercussão do fato. Sinto- -me muito feliz, e orgulhoso, como observador de aves, em contribuir com os registros para a ciência”, diz ele.

Assim que soube da novidade, uma equipe de biólogos e ornitólogos saiu em expedição para buscar mais imagens e informações sobre a harpia. Francisco Hamada acompanhou o grupo em vários dias de expedição.

Pedro Scherer Neto, um dos maiores especialistas em aves do Brasil e pioneiro nas pesquisas em ornitologia, participou da busca pela harpia.

“Eu fui numa euforia generalizada, porque, hoje em dia, ver uma harpia à solta, a maior águia das Américas, foi uma surpresa enorme e, por muita sorte, isso aconteceu. Isso também gerou muitas perguntas. Então, o Instituto de Águas e Terras (IAT) nos contatou, para ver se conseguíamos novas imagens e procurar informações sobre o ambiente, conhecer mais a região. Infelizmente não conseguimos ver novamente a ave, mas avistamos outros gaviões também muito importantes para a avifauna do Paraná.”

O ornitólogo afirma que a foto foi um ato de sorte, como “ganhar na loteria”. Pelas imagens foi possível supor que é um macho. A fêmea é maior, pode pesar sete quilos, enquanto que o macho pesa até cinco quilos. “Uma diferença visível de forma, de tamanho, de bico e de cabeça. A gente está supondo que é um macho, mas precisaríamos de evidências mais próximas para afirmar com certeza”, esclarece.

Pedro Scherer Neto acredita que existam outros indivíduos no estado, mas considera muito difícil fazer a pesquisa. É preciso paciência, tempo e sorte. “Não é fácil acessar os remanescentes da Floresta Ombrófila Mista e um pouco da Estacional. Isso também é um fator positivo, porque dificulta a ação de caçadores. É uma tragédia histórica que moradores abatam essas grandes aves quando veem um gavião ou falcão pegando animais domésticos, como galinhas e pintinhos. Uma harpia é capaz de pegar um porco ou um leitão, um filhote de carneiro ou cabrito, e a caça pode acabar definitivamente com a espécie.”

O biólogo e ornitólogo Rômulo Silva, da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), explica que a harpia é tão rara e ameaçada porque depende de grandes áreas de floresta para cumprir totalmente o ciclo de vida e se alimentar. Ele lembra que o Paraná era um estado predominantemente florestal, coberto quase 100% do Bioma Mata Atlântica: no leste com a Floresta Atlântica, indo para o interior, subindo o planalto, com as Florestas com Araucárias, e mais para o oeste e o norte com a Floresta Seca do Rio Paraná. São esses os ambientes de ocorrência dessa ave.

“A expansão das atividades humanas, o desmatamento de florestas inteiras para retirada de madeira e o avanço da agropecuária causaram a perda do ambiente da espécie. Não houve, durante o período da colonização e do progresso das cidades, preocupação em preservar um pouco das áreas naturais. Sobraram pouquíssimos remanescentes florestais interessantes para a ocorrência da harpia. Somada à supressão das áreas verdes, também tem a questão do abate predatório. Pela falta de presas naturais, a harpia se alimentava das criações e acabava alvejada e morta pelos moradores. Além disso, a reprodução da espécie é muito complexa. A fêmea só atinge a maturidade sexual a partir dos seis, sete anos de idade, e gera apenas um único filhote a cada três anos”, explica o biólogo da SPVS.

Além de conseguir as fotos da harpia, Francisco Hamada também guiou a expedição, que contou com a participação dos ornitólogos Pedro Scherer Neto e Rômulo Silva, do herpetólogo e fotógrafo de vida selvagem Glauco Oliveira e da botânica Laura de Lannoy. Crédito: Rômulo Silva.

A fotografia da harpia pode ser o primeiro passo para um projeto emblemático de estímulo à conservação e recuperação da espécie. O condor-da-califórnia estava praticamente extinto na natureza devido à caça e à destruição de seu habitat. O governo americano capturou os últimos indivíduos para um programa de reprodução gigantesco. Após vários anos, a ave foi reintroduzida na natureza e, hoje, existem quase duzentos condores livres. Um projeto enorme que depende de dinheiro, pesquisa, comprometimento e profissionais em dedicação exclusiva.

“Eu vi uma harpia em 2003 no litoral, no Rio Saiguaçu, perto de Guaratuba, entre Paraná e Santa Catarina, e sei de relatos de colegas ornitólogos que viram três indivíduos sobrevoando a região de Garuva. É um animal muito raro, mas ainda existem alguns, mesmo que poucos, ambientes que poderiam comportar uma população de harpias”, conta Pedro Scherer. Os ornitólogos sempre acreditaram que tivessem sobrado áreas para esses animais na região leste, na Serra do Mar, ou no lado oeste, no Parque Nacional do Iguaçu.

“Basta olhar no mapa para verificar que há nessas regiões grandes mosaicos florestais, porém existem também na região Centro-Sul, principalmente em Palmas e General Carneiro. A fotografia da harpia confirma a suspeita de que a espécie sempre ocorreu por ali. E, por incrível que pareça, ainda restaram alguns remanescentes de Florestas com Araucárias grandes no Centro-Sul devido ao relevo acidentado. Existem muitas colinas e muitos morros que dificultam a retirada da madeira ou instalação de atividade agropecuária. Isso permitiu que a vegetação ficasse, e foi isso que proporcionou condições para esse animal continuar sobrevivendo ali. Todas as outras regiões paranaenses acessíveis já foram exploradas pelo ser humano, e assim a harpia foi desaparecendo”, conclui Rômulo Silva, da SPVS.

Animais, tanto mamíferos como aves de grande porte, têm necessidade de grandes áreas para sobreviver, assim como animais menores precisam de espaços menores. Para que o gavião-real tenha condições de vida novamente no Paraná, é preciso conservar os ambientes naturais que restaram. O crescimento das populações de grandes aves de rapina depende ainda de projetos de restauração e recuperação de florestas, além da formação de corredores de biodiversidade, interligando reservas naturais.

Exportação

A taxa de sobrevivência de filhotes, que fica em torno de 80%, permite que o Programa de Reprodução de Harpias da Itaipu seja um fornecedor de espécimes para várias instituições ambientais. A próxima doação será de um casal, que será enviado ao ZooParc Beauval, na cidade de Saint-Aignan, na França. As duas aves são consideradas de segunda geração, ou seja, filhotes de aves nascidas no Refúgio.

Natureza

O objetivo, num futuro próximo, é devolver à natureza as aves nascidas em cativeiro. “Já temos animais com idade compatível para entrar em um programa de soltura”, explica Marcos. “É preciso finalizar o processo, criar um recinto no meio da floresta, longe do contato humano, e garantir a oferta de presas vivas para as aves caçarem.” Segundo ele, as aves precisam estar expostas a situações naturais, como procura de comida ou a falta de proteção contra a chuva e o sol. O Programa já está em contato com outras instituições para encontrar locais onde poderiam ser feitas as solturas.

Refúgio Biológico Bela Vista é o maior centro de reprodução de harpias do mundo e comemorou nascimento do 50º filhote

O filhote tem apenas 89 gramas e é um macho. “O recémnascido foi tirado do ninho no dia 27 de abril, mas, devido ao seu tamanho e comportamento, acreditamos que o ovo tenha eclodido no domingo, dia 26”, explicou o biólogo da Divisão de Áreas Protegidas da Itaipu, Marcos de Oliveira, especialista no manejo de aves de rapina.

Para o diretor de coordenação do projeto, Luiz Carbonell, essa é mais uma grande conquista da Itaipu, que é referência em vários projetos e ações socioambientais. “Logo essa ave estará ajudando em outros programas de reprodução no planeta, o que, para nós, é motivo de grande orgulho”, diz.

O pai do filhote é o primeiro macho nascido no Refúgio, em 2009. A mãe veio do Parque Zoobotânico Vale, no Pará, em 2014. Eles formam um dos seis casais reprodutores do plantel, que conta, atualmente, com 36 aves. Logo essa ave estará ajudando em outros programas de reprodução no mundo.

“Nosso programa é o único no mundo que mantém uma reprodução continuada da espécie. Em outras instituições, há dois ou três nascimentos, mas não é mantida a reprodução de forma constante”, explica Marcos.

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