Introdução
Esta é uma coletânea despretensiosa de alguns autores que, em algum momento de sua obra, na filosofia ou na economia, trataram da questão homem-natureza. Não pretende ser uma coletânea imparcial, um apanhado jornalístico da questão. Defendo, aqui, dois pontos de vista: (i) o papel determinante dos modelos econômicos de exploração na degradação da natureza e na interpretação filosófica da relação homem/natureza, e (ii) a indispensabilidade da contraposição, a esses modelos, de ações conservacionistas que melhorem o presente e assegurem o futuro do planeta. Espero que estas observações contribuam para incentivar o necessário debate sobre o tema.
1. Entre os povos primitivos, o entendimento de que o homem era apenas um ser vivo a mais, na complexa e temível composição da natureza, manifestava-se de modo simples e direto. As forças da natureza — por serem reconhecidamente superiores — ocupavam um lugar especial nos “ecossistemas” físico-socioculturais das comunidades e eram veneradas por seu poder e respeitadas humildemente pelos homens.
2. As tentativas humanas de fugir a essa condição submissa sempre foram duramente punidas. David Landes, autor de Prometeu Desacorrentado (1), um dos clássicos modernos da literatura econômica, vê nessa arrogância (ou insubmissão) do homem, o começo de tudo. Adão e Eva provaram o fruto proibido da Árvore do Conhecimento e foram expulsos do Paraíso. Prometeu roubou o fogo e foi acorrentado a um rochedo e submetido a cruel tortura. Dédalo perdeu seu filho Ícaro — “orgulhoso planador das alturas” e amargou seu fim no exílio. Landes conclui, porém, que nenhuma dessas duras punições dos deuses à arrogância de homens insubmissos foi suficiente para evitar que seu fim último fosse atingido: Adão e Eva foram expulsos, porém mantiveram o conhecimento. Prometeu — e toda a humanidade — sofreu o peso da fúria de Zeus, que enviou Pandora e sua caixa de infortúnios para punir a ousadia. Porém Zeus jamais retomou o fogo. Dédalo perdeu Ícaro, mas escapou do Labirinto e transmitiu seu engenho a dezenas de artesãos. O poder que o conhecimento conferiu aos homens não mais lhes foi retirado.
3. Ao iniciar a longa caminhada civilizatória, o homem começou também a construir uma imagem mais monolítica de si e de seu universo, assentada numa ordem rígida. Não é o senhor do universo, porém recebe a incumbência divina de povoar e dominar o mundo. É curioso observar que, a partir de então, a história do homem é extremamente lacônica no que diz respeito ao seu entorno. São muito raros os momentos em que o livro do Gênesis, por exemplo, ao narrar a história do homem sobre a Terra, se remete a cataclismas físicos. O dilúvio vale apenas como cenário para demonstrar, mais uma vez, que o engenho humano — seja qual for sua versão religiosa — poderia derrotar qualquer força natural. Os fenômenos biológicos elementares — a vida e a morte — eram remetidos para outra esfera, o Paraíso.
4. Embora a história da filosofia registre constantes esforços no sentido de reinterpretar a relação homem-natureza — pendendo quase sempre ao reconhecimento ou à consagração da supremacia humana —, a verdade é que, como lembra François Jacob, em A Lógica da Vida (2), “até o século XVIII os seres vivos não têm história”. Diz Jacob que, “mesmo quando a espécie passa a ser definida com mais rigor, é considerada como um quadro fixo em que os indivíduos se sucedem. Através de gerações sucessivas, são sempre as mesmas figuras que se encontram nos mesmos lugares. O quadro permanece imutável, perpetuamente idêntico a si mesmo”. Não surpreende, portanto, o fato de que a filosofia caminhasse na mesma direção. Descartes consolidou essa interpretação ao descrever o mundo como uma máquina perfeita governada por leis exatas.
O Século XIX
5. As primeiras oposições à rigidez cartesiana que tomara conta da ciência, influindo intensamente na filosofia, ocorrem mais por conta da sensibilidade do que de qualquer fundamento científico. O romantismo alemão, por exemplo, aproxima novamente o homem da natureza. Uma bela frase de Goethe, citada por Fritjof Capra (3), dá o tom da época: “Cada criatura é apenas uma gradação padronizada de um grande todo harmonioso”. A ideia da “gradação padronizada” ainda revela a dificuldade em admitir o homem como parte da variabilidade das formas naturais “harmoniosas”, embora não impeça Goethe de mergulhar tão fundo quanto possível na alma atormentada da criatura humana.
6. Em direção oposta, o naturalismo exaltava a ideia de que tudo poderia ser reduzido à sua natureza física. Os naturalistas defendiam o determinismo como princípio — “a natureza é um sistema determinado e os seres humanos, como parte da natureza, são determinados também” — e despertavam a ira dos românticos e dos cientistas pela imobilidade que atribuíam à natureza e ao próprio homem. O resultado da observação e da descrição preconizada pelos naturalistas manifestava-se no progressivo aumento das listas de classificação de espécies e em retratar, do mesmo modo, o comportamento humano. De certo modo, os naturalistas sustentaram ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, uma visão tão fragmentada da relação homem-natureza quanto a do humanismo antropocêntrico, uma vez que realizavam o corte da observação no indivíduo, ignorando completamente as modificações causadas inter-relações entre os seres por eles descritos e catalogados.
7. Algumas das novas descobertas científicas e a exuberância do debate filosófico do século XIX introduziram novas questões e perturbadoras interpretações. As inovações no campo da biologia, trazidas pelo aperfeiçoamento do microscópio e pela introdução do conceito de evolução, combinados à genialidade dos mestres da filosofia da época, como Hegel, Engels e Marx, literalmente revolucionaram a interpretação da organização do mundo, como se entendia até então.
8. No campo filosófico, Engels e Marx aportaram à dialética idealista de Hegel uma interpretação materialista, fortemente assentada sobre a observação da natureza. Edgar Morin (4) — um dos poucos estudiosos contemporâneos da questão da “natureza do homem” — lembra que Engels, um observador atento da organização das comunidades humanas, falava em “dialética da natureza” e nela procurava enquadrar o homem, como parte dos mesmos processos naturais. Os escritos do chamado jovem Marx apontavam claramente nessa direção: “A natureza é o primeiro objeto da ciência que trata do homem” e profetizavam: “As ciências naturais englobarão em seguida a ciência do homem, assim como a ciência do homem englobará as ciências naturais: apenas haverá uma ciência”. Alguns anos depois, no livro A Ideologia Alemã, Marx parece ter perdido o otimismo sobre essa potencial fusão: “o comportamento acanhado dos homens em face da natureza condiciona-lhes o comportamento acanhado entre eles”. Com o tempo — e a importância que o trabalho de Marx passa a ter — essas ideias acabaram esquecidas. Morin acredita que foi conveniente, para as tendências estruturalistas que se aplicaram ao marxismo, “purificar” seus fundamentos de qualquer resíduo naturalista, ao mesmo tempo em que “arrumavam no museu a embaraçosa ‘dialética da natureza’” de Engels. Por essa ou outras razões, ao mergulhar na interpretação das condições de desenvolvimento do capitalismo, o marxismo deixou de lado as questões da procedência natural da matéria-prima. Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente a frase recolhida por Ken Coats (5), atribuída a Marx: “Todo avanço na agricultura capitalista significa um avanço não apenas na arte de como roubar o camponês, mas também de como roubar a terra; todo avanço para incrementar a fertilidade do solo durante um certo período significa um passo a mais em direção à destruição das fontes permanentes de fertilidade”.
9. Se Marx tivesse tempo para desenvolver esta ideia, poderia ter chegado a outra conclusão importante: ao transferir energia da natureza (calor do sol, água, ar, fertilidade do solo etc.) para o produto, o processo produtivo, do ponto de vista puramente físico, altera a qualidade e a quantidade do estoque dessa energia. O economista Nicholas Georgescu-Roegen (6) afirma que, “através do processo econômico, o homem transforma energia disponível ou livre, sobre a qual tem domínio quase completo, em energia não disponível ou ligada, que praticamente não pode utilizar. E esse processo é irreversível”. Existe, portanto, o uso da energia livre da natureza. O que ocorre é que o próprio uso da energia disponível afeta sua disponibilidade, e a manutenção do seu potencial de uso exige trabalho humano.
10. É interessante observar que as ideias do jovem Marx sobre a ciência aproximavam-se dos estudos de outro cientista alemão, Ernest Haeckel, um naturalista entusiasmado com a teoria evolucionista. Em 1869, Haeckel apresentou ao mundo o conceito de ecologia, assentado sobre a interdependência entre os seres vivos circunscritos em um habitat ou na biosfera. Pela primeira vez, as ciências exatas e biológicas são avocadas simultaneamente para produzir um novo conceito. Se a definição de Haeckel, na época, tivesse vencido a forte resistência dessas próprias ciências a incluir o homem nesse mundo inter-relacionado, o avanço em direção a um modelo menos predatório teria ocorrido simultaneamente ao modelo predatório. Poderia ter funcionado como um freio ou uma profecia.
11. O que ocorreu, porém, é que a rígida divisão entre as ciências “humanas” e “biológicas” continuou, apesar do conceito de Haeckel. Edgar Morin afirma que a divisão entre biologismo — uma concepção de vida fechada e centrada no organismo, e o antropologismo — que vê o homem de modo insular, foi rigidamente mantida até os anos 50 desse nosso século XX, com todos os prejuízos que isso acarretou.
12. De todo modo, os princípios enunciados por Haeckel fundamentaram, com certeza, os esforços para formular um conceito adequado à conservação da natureza, mas o que acabou prevalecendo na relação homem-natureza foi, mesmo, o fantástico aperfeiçoamento do processo produtivo e a força da interpretação econômica dos fatos da natureza, concentrados sob a rubrica “recursos naturais” no mundo contábil e financeiro.
O Século XX
13. No livro Ecologia y Libertad, o francês Michel Bosquet (7), colaborador de diversas publicações francesas e membro do comitê de redação de Le Temps Modernes, considera a crise da relação homem-natureza como uma das dimensões não previstas pelo marxismo clássico. Vale a pena conhecer sua análise, considerada como uma das mais refinadas avaliações da sociedade moderna: “Sabemos que nosso mundo se extingue; que, se continuarmos na mesma trajetória, os mares e os rios serão estéreis, a terra carecerá de fertilidade natural, o ar resultará irrespirável nas cidades e a vida constituirá um privilégio a que somente terão direito os espécimes selecionados de uma nova raça humana, uma nova raça que, à mercê dos condicionamentos químicos e programação genética, se adaptarão ao novo nicho ecológico que a engenharia biológica sintetizará para eles”. Há 150 anos, diz Bosquet, as sociedades industrializadas vivem da pilhagem acelerada dos estoques de bens naturais cuja constituição exigiu dezenas de milhões de anos. E as questões envolvendo o futuro do planeta, da biosfera ou das civilizações não encontraram resposta nem entre os economistas clássicos, nem entre os marxistas, nem mesmo entre os não alinhados, como Keynes, que paga até hoje o preço de sua frase brilhante, mesmo um pouco fora de contexto: “No longo prazo, todos estaremos mortos”.
14. Apostando na ciência e na tecnologia para encontrar saídas, todos deixaram de ver o essencial: a atividade produtiva vive de um modo ou de outro às custas dos recursos limitados do planeta e das trocas que realiza com a própria natureza. A filosofia já concluíra que a natureza não é “boa” para o ser humano — obrigado a trabalhar duro para seu sustento — e, nesse processo, sua destruição é um requisito essencial à produção. Nesse caso, os desequilíbrios seriam provocados por esse esforço de sobrevivência e, portanto, não poderiam ser evitados e de nada valeria se preocupar com as consequências. É novamente Bosquet que faz a análise mais eloquente:
“A natureza não é intangível. O projeto ‘prometeico’ de dominá-la ou domesticá-la não é, necessariamente, incompatível com a inquietude ecológica. Toda cultura exerce uma ação invasora sobre a natureza e modifica o meio ambiente. A questão nova que a ecologia propõe fundamenta-se em saber:
– se as transferências que a atividade humana impõe ou arranca à natureza preservam os recursos não renováveis;
– se os efeitos destrutivos da produção não superam os efeitos positivos em razão da excessiva pressão sobre os recursos renováveis.”
Estas são as grandes questões sem resposta no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.
Com um pé no século XXI
15. Dois aspectos merecem especial atenção, no que diz respeito à atual pressão sobre a natureza. Primeiro, a necessidade que a produção capitalista tem de aumentar sempre a quantidade de mercadorias vendidas e, segundo, a busca da sofisticação para assegurar este consumo, a preços cada vez maiores. A produção se faz cada vez mais destrutiva e desperdiçadora, para atender a um consumo cada vez mais “opulento”. Basquet oferece alguns exemplos dessa sofisticação: o uso crescente do alumínio nas embalagens, em substituição à folha lata, o declínio das ferrovias em favor dos automóveis, a redução da vida média da “linha branca” de eletrodomésticos; as embalagens não reutilizáveis.
16. Esta expansão predatória da produção encontra limites físicos concretos e gera novas categorias de escassez, não apenas de matérias-primas minerais, como também do espaço físico nas grandes cidades, do ar, da água, da fertilidade natural do solo, na cobertura florestal e da fauna marinha. Independentemente do significado ecológico dessa escassez, o aumento do valor desses elementos pressiona a composição dos custos dos produtos a ponto de ameaçar a própria capacidade de reprodução do capital investido. Diante disso, o capital se defronta com duas dificuldades: a necessidade de dominar a tecnologia da reciclagem, como forma de reduzir os custos; a regulamentação do uso do espaço físico, do ar, da água e de outros bens naturais ainda disponíveis. Em resumo, a manutenção do lucro encontra na natureza um obstáculo novo. Para Bosquet, este é o dilema atual do capitalismo: uma crise de reprodução que se deve, em última instância, à escassez de recursos naturais: “a solução da crise já não se encontra no crescimento econômico, mas apenas na inversão da lógica capitalista”. Não se trata mais de criar “o máximo de necessidades para satisfazê-las com o máximo de bens e serviços mercantis, obtendo ao mesmo tempo o máximo benefício da abundância máxima de matérias-primas e energia”, como foi até agora. A nova lógica aponta para novos significados: “melhor” pode ser “menos”: criar um mínimo de necessidades e satisfazê-las com o menor dispêndio possível de matérias-primas, energia e trabalho, causando o menor dano possível ao ambiente. Essa inversão, segundo Bosquet, não precisa representar, necessariamente, um empobrecimento da sociedade. É o estilo do consumo que faz a diferença. A escassez é a outra face do desperdício, do mesmo modo que a divisão é o reverso da multiplicação. Crescer com desperdício nada mais é do que multiplicar a escassez.
17. A proposta do “desenvolvimento autossustentável” é a representação conceitual dessa tentativa de inversão de rumos do capitalismo contemporâneo, sem perder a garantia de manutenção dos princípios básicos: perder apenas os anéis… Os dois componentes básicos do modelo autossustentável, do ponto de vista do processo produtivo, são exatamente os mesmos indicados para superar os obstáculos criados pelo esgotamento dos recursos. Primeiro, pesados investimentos em tecnologia de reciclagem, para reduzir custos: segundo, proteção máxima aos estoques estratégicos de matéria-prima, inclusive potenciais, como é o caso das florestas para o desenvolvimento da biotecnologia. O homem passa a se colocar como gerente competente do mundo que ajudou a dilapidar e reveste essa nova postura produtiva de alguns princípios humanistas: justiça social ou critério de solidariedade com a geração presente; proteção ambiental ou critério de solidariedade com a geração futura; ao lado da anunciada eficiência econômica.
18. O termo “desenvolvimento autossustentado” começou a ser empregado depois da Conferência de Estocolmo, primeiro timidamente, depois como um gigantesco “guarda-chuva” que encobria e/ou abrigava os mais diversos interesses. A ideia contida no novo conceito gerou desconfianças de todo tipo. Para os países ditos em desenvolvimento, oferecia motivos para reclamar, ao mesmo tempo, contra os “freios” ao crescimento e em defesa da igualdade de direitos ao desenvolvimento entre todos os países. Para os países ricos, era um modo de assegurar a manutenção da riqueza biológica dos países pobres, com vistas, é claro, à manutenção dos estoques.
19. A proposta do desenvolvimento sustentável deslocou definitivamente o cerne da questão ambiental — a conservação da natureza — para a periferia, fortalecendo, no eixo central, a discussão sobre modos menos agressivos de exploração dos recursos naturais. Esse deslocamento real se reflete na evolução das ideias, que reafirmam o crescente predomínio das leis dos homens sobre o ambiente em diferentes correntes. A ética resultante — do “menor dano” para o “maior aproveitamento”, do “respeito às gerações futuras” etc. — contorna cuidadosamente as questões essencialmente ligadas à conservação. Essa abordagem soft da questão, que se manifesta nas múltiplas faces do “ambientalismo”, tem um grande apelo e ganhou rapidamente a opinião pública: a defesa do verde passa a ocupar um espaço importante no conjunto de causas politicamente corretas, sem contribuir, contudo, para um redirecionamento da discussão fundamental. Maria Teresa Jorge Pádua (8), da ala mais radical do conservacionismo brasileiro, ao analisar a questão, observa que “sob esse guarda-chuva do desenvolvimento sustentável coube tudo. Então, quando se fala de meio ambiente, tem que incluir as minorias, as mulheres, os negros, os índios, os homossexuais etc. Tudo isso sob a área ambiental, uma panaceia. Nem nós temos, obviamente, competência para tudo isso, nem os recursos são suficientes. Com esse negócio do desenvolvimento sustentável, o que se vê é que os parcos recursos que a área de conservação tinha foram desviados para o social. Acho que Maurício Strong cometeu um enorme erro ao oferecer aos governos esse instrumento demagógico”.
20. A onda do desenvolvimento sustentável atingiu de forma intensa e veloz o movimento conservacionista, assentado sobre a necessidade de concentrar esforços na luta pela sobrevivência de remanescentes representativos dos diferentes biomas da Terra. Um dos primeiros golpes partiu da amável senhora Gro Brundtland, presidente da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada em 1983 pela ONU. A comissão deveria propor estratégias ambientais a longo prazo e trabalhou durante quatro anos, com uma seleta equipe de especialistas, na elaboração do documento final, publicado com o nome de “Nosso Futuro Comum” (9). Na apresentação do documento, a senhora Brundtland explica o seguinte: “Em 1982, quando se discutiam pela primeira fez as atribuições de nossa Comissão, houve quem desejasse que suas considerações se limitassem apenas a ‘questões ambientais’. Isto teria sido um grave erro. O meio ambiente não existe como uma esfera desvinculada das ações, ambições e necessidades humanas, e tentar defendê-lo sem levar em conta os problemas humanos deu à própria expressão “meio ambiente” uma conotação de ingenuidade em certos círculos políticos. Também a palavra “desenvolvimento” foi empregada por alguns num sentido muito limitado, como “o que as nações pobres deviam fazer para se tornarem mais ricas” e por isso passou a ser automaticamente posta de lado por muitos, no plano internacional, como algo atinente a especialistas, aqueles ligados a questões de “assistência ao desenvolvimento”. Mas é no “meio ambiente” que todos vivemos; o “desenvolvimento” é o que todos fazemos ao tentar melhorar o que nos cabe neste lugar que ocupamos. Os dois são inseparáveis. Cinco anos depois, a mesma senhora Gro, enquanto primeira-ministra da Noruega, liderou uma agressiva campanha em defesa da pesca da baleia-de-minke. O prestígio da primeira-ministra ficou abalado, mas os interesses comerciais do país foram preservados. Irritada com as manifestações de protesto, dentro e fora do país, Gro Brundtland mandou os ambientalistas gastarem sua energia em outros problemas de maior impacto sobre “nosso futuro comum”. A possibilidade de extinção da baleia-de-minke não representava impacto suficiente do ponto de vista das empresas de pesca da Noruega.
21. A necessidade de um novo ordenamento para o dilema homem-natureza, definindo qual a operação aritmética que determina essa relação (mais ou menos, multiplicação ou divisão), resulta numa curiosa reedição no campo filosófico, com o surgimento de uma forte corrente espiritualista, fundada pelo norueguês Arne Naess na década de 70 e que hoje tem no físico Fritjof Capra um de seus expoentes. Naess criou o conceito de “ecologia profunda”, fundamentada no questionamento da visão de mundo e do modo de vida modernos, “científicos, industriais, orientados para o crescimento e materialistas”. Trata-se de uma recuperação do pensamento primitivo, onde o Chefe Seattle e sua convicção de que “tudo o que acontece com a Terra, acontece com os filhos da Terra” é constantemente avocado. Ao contrário, porém, da ilimitada coragem dos mortais da mitologia grega, que afrontavam seus deuses-naturezas munidos apenas da capacidade de conhecer, a “ecologia profunda” é a teoria da sobrevivência — renuncia ao racional e busca o intuitivo exatamente porque a ciência aponta na direção do desastre. Por isso mesmo, torna-se presa fácil das armadilhas contidas na proposta do desenvolvimento sustentável. Capra dirige o Centro de Alfabetização Ecológica em Berkeley, Califórnia, e não tem medido esforços para catequizar o mundo nesta nova perspectiva de organização do planeta, onde valores como “expansão, competição, quantidade e dominação” devem ser substituídos por “conservação, cooperação, qualidade e parceria”. Muito mais do que propor um novo relacionamento do homem com o seu ambiente, a filosofia de Capra propõe um novo ordenamento social, passando ao largo, entretanto, das questões de fundo que movem o mundo produtivo.
22. Os novos paradigmas — “conservação, cooperação, qualidade e parceria” — foram rapidamente adotados pelo linguajar moderno e sustentaram grande parte do ideário dos discursos da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Sob sua inspiração, assinaram-se convenções e acordos, prometendo, fundamentalmente, a conservação dos recursos, a cooperação entre países pobres e ricos e a parceria entre o público e o privado, sociedades e governos. Esses mesmos conceitos, entretanto, estão absolutamente ausentes dos textos que tratam do lado “sério” das interrelações — o processo produtivo. E para preencher essa lacuna, o discurso do desenvolvimento sustentável é sempre conveniente porque, na prática, serve para sustentar o desenvolvimento do mesmo estado de coisas.
23. A função mais precisa desse discurso difuso é de amortecer os choques explícitos entre o desenvolvimento real dos processos produtivos — que continua predatório como sempre foi — e a conservação do patrimônio natural da humanidade preconizada pela ciência. É um jogo de cena extremamente profícuo: é elegante, políticamente correto defender o “desenvolvimento sustentável”, enquanto isso não represente qualquer risco ou ônus econômico. A partir do momento em que a conservação da natureza apresenta qualquer obstáculo ao crescimento econômico convencional, imediatamente o discurso retoma o enfoque do “interesse público para a geração de novos postos de trabalho, para aumento da renda, aumento da arrecadação, aumento do PIB”. Essas categorias — abrigadas sob o guarda-chuva do desenvolvimento sustentável, deslocam automaticamente a questão para o social. A manutenção de uma reserva florestal em área de interesse para construção de uma indústria pode gerar uma guerra em que se aliam setores produtivos, tecnocratas governamentais, sindicatos e população em geral, em defesa do emprego, do desenvolvimento, contra um número cada vez menor de conservacionistas. A frase de Maria Teresa Jorge Pádua é exemplar: “dá até vergonha falar que é preciso proteger o mico-leão-dourado; quem faz isso é tratado como alienado”. Este confronto, típico dos países ditos em desenvolvimento, tem sua versão “desenvolvida” nas questões relacionadas, por exemplo, ao papel da indústria automobilística na economia mundial e a redução das emissões de CO2.
24. No que diz respeito ao patrimônio natural, as dificuldades de expansão do capitalismo — escassez de matéria-prima gerando aumento de preço e necessidade de proteger estoques — antecipam soluções que vão sendo incorporadas ao rítmo do desenvolvimento sustentável, naquilo que a preservação do lucro justifica. Os investimentos destinados ao avanço da tecnologia da reciclagem se fazem naquelas áreas onde a escassez da matéria-prima pode comprometer a posição do produto no mercado; a regulamentação do uso do espaço físico, do ar e da água se dá a partir da fixação de valor para uso e troca; no caso dos estoques de floresta, a criação de unidades de conservação de uso direto — passíveis de exploração e sem qualquer ônus, ganha espaço crescente, subsidiando, indiretamente, uma ofensiva na direção das unidades de conservação de uso indireto. A impopularidade de medidas rigorosas de conservação é crescente. O número de casos de invasão de áreas de uso indireto é crescente e, com muita frequência, a justificativa exterior, pública, para essa ofensiva é o confronto entre desenvolvimento e conservação.
25. Seria ingênuo imaginar que a questão de proteção ao patrimônio natural contida no conceito de desenvolvimento sustentável ficasse restrita aos aspectos diretamente produtivos, relacionados à oferta de matéria-prima. A destruição da natureza — que coincide com a mudança dos níveis de exigência da sociedade ocidental — transformou qualidade de vida em bem de alto valor no mercado, “reserva exclusiva” de quem pode pagar pela manutenção dessa qualidade. Assim, os espaços urbanos mais distantes do barulho e da poluição e mais próximos de áreas protegidas, as praias e os rios mais limpos, passam a ter um valor de mercado excepcional e, consequentemente, de acesso extremamente restrito. Com objetivos bem distintos, é claro, essas áreas usam o mesmo rigor que deveria ser imposto às unidades de conservação de uso indireto, para impedir a entrada de “estranhos”. Portanto, a qualidade ambiental de uma área é uma mercadoria, desde que tenha algum valor de mercado real e imediato. Caso contrário, pelas regras vigentes, só “atrapalha o progresso”.
26. O sonho de uma sociedade menos desigual não chegou a abalar, na prática, os conceitos convencionais sobre a relação do homem com a natureza e, embora Marx e Engels tivessem ensaiado uma interpretação filosófica menos fragmentada da natureza, o socialismo real esteve bem longe disso. No que diz respeito ao desenvolvimento dos meios de produção, o socialismo foi apenas um espelho do capitalismo — reflexo invertido — e, no que diz respeito à exploração e ao aproveitamento do patrimônio natural, com frequência utilizou mecanismos ainda mais predatórios. Em termos econômicos, a Teoria do Valor desenvolvida por Marx contribuiu, com toda a certeza, para justificar a predação. Ao explicar o valor dos meios de produção no processo de trabalho, Marx afirma, em O Capital (10), que “todos os meios de produção oferecidos pela natureza, sem qualquer intervenção humana, como a terra, o vento, a água, o ferro nas minas, a madeira na floresta virgem etc., criam valor de uso mas não têm valor de troca, ou seja, não têm valor efetivo, não são mercadorias”. Dessa listagem, apenas o ar — e em alguns casos, a água —permanece com valor de uso, mas vale a pena pensar se Marx consideraria “intervenção humana” o esforço para filtrar a emissão de poluentes para manter o ar ou a água em condição de uso. Na verdade, é exatamente o que está em discussão, hoje, com os princípios poluidor-pagador ou a taxação da água, a negociação do direito a poluir etc. Os homens terminarão por se apropriar de todos os bens oferecidos pela natureza, separando-se definitiva e absolutamente dela.
27. A compreensão da natureza além dos limites da propriedade e da produção ficou restrita a um grupo extremamente reduzido de cientistas que abrigam, simultaneamente, um conhecimento profundo da dialética na natureza e uma clara convicção filosófica sobre o significado do direito dos seres vivos que têm na Terra seu único habitat. Entrincheirados nos últimos remanescentes de diferentes biotas, os conservacionistas defendem, intransigentemente, uma política e uma filosofia que defenda os valores da natureza, sem perder de vista as necessidades presentes do homem; que defina um uso presente do meio ambiente de modo a assegurar o suprimento de recursos naturais para as futuras gerações. Laboriosos, conseguiram imprimir seu rigor em alguns dos documentos políticos mais importantes do século XX. Geraram a consciência da necessidade da preservação, criaram as unidades de conservação de uso indireto, conseguiram impor ao público leigo conceitos e palavras tão inusitadas quanto a biodiversidade. Essas vitórias, entretanto, não foram suficientes para reduzir a velocidade da degradação ou para mudar as metas da exploração da natureza pelo homem. Ibsen de Gusmão Câmara (11), uma das mais importantes figuras do conservacionismo brasileiro, vê pelo menos três razões para explicar as dificuldades enfrentadas para implantar uma política conservacionista hoje, em qualquer lugar do planeta: “Primeiro, a dificuldade de compreender os processos complexos de inter-relacionamento das biotas, dos ecossistemas etc. É muito difícil essa compreensão chegar ao povo de maneira generalizada. O segundo fator é que, muitas vezes, os problemas só vão aparecer a longo prazo, e nem o povo, nem os políticos estão interessados no longo prazo. E o terceiro fator é a própria natureza humana. As pessoas pouco se importam com o que vai acontecer com os descendentes; querem o seu próprio bem-estar, agora”.
28. O conservacionismo, como filosofia, é espartano demais para o frenesi da produção e do consumo que caracterizam este final de século. A ética conservacionista, estabelecendo direitos iguais para todos os seres vivos, choca-se com séculos de pensamento humanista antropocêntrico. A cautela conservacionista é definitivamente arrasada pela expansão populacional que gerou um círculo vicioso de problemas insolúveis, como lembra Alceo Magnanini, outro dos veteranos conservacionistas brasileiros: “Não há possibilidade de expandir boa qualidade da água, do ar, dos alimentos e do abrigo. É impossível que todo mundo mantenha uma boa qualidade de vida, porque a lotação do planeta Terra já excedeu aquilo que os recursos naturais poderiam fornecer de uma maneira equânime, democrática e social. Não é mais possível, hoje, o equilíbrio social face às demandas do meio ambiente”. Como realizar, então, a premissa básica do conservacionismo que preconiza “o manejo dos recursos do ambiente — ar, água, solo, minerais e espécies viventes, incluindo o homem, de modo a conseguir a mais alta qualidade de vida humana sustentada?
29. Os conservacionistas constituem um clã de resistência planetária. Organizados em redes internacionais, identificam rapidamente os sinais de alarme e mobilizam com facilidade seu pequeno e ruidoso exército, sempre que necessário. O internacionalismo conservacionista é uma prova simples, mas contundente, da amplitude da proposta, uma das poucas áreas de atividade social do homem que tem a dimensão da própria natureza.
30. De modo geral, porém, na virada do milênio, o fetiche da tecnologia sustenta a convicção de que sempre será possível encontrar uma saída. Não mais a fonte da juventude ou o toque de midas, mas inventos que purifiquem o ar, as águas dos rios e dos mares, devolvam vida aos desertos e fertilidade aos solos, façam renascer as florestas. Tudo isso, sem abrir mão de nenhuma das quinquilharias que caracterizam o conforto do mundo moderno.
31. Os recentes esforços para estabelecer valores econômicos aos bens naturais finalmente aproximam o foco da discussão da questão essencial, isto é, o modo como a natureza tem sido explorada com a finalidade de produzir riquezas. A evolução do conhecimento humano nesta área tem subsidiado diferentes correntes filosóficas em sua interpretação das relações entre homem e natureza, mas a verdade é que a prática tem sido uma só: tirar da natureza o máximo possível com o mínimo de trabalho. Esta prática explica por que sempre foram tão baixos os investimentos em tecnologias adequadas e/ou poupadoras do patrimônio natural. Recentemente, as novas demandas do mundo ocidental, impulsionadas por diferentes visões filosóficas do presente e do futuro, têm pressionado o capital quase na mesma intensidade que o aumento de custos pela crescente dificuldade na obtenção de matérias-primas. A adesão de um ou outro segmento a tecnologias “limpas” cria uma situação de desigualdade de lucros de onde são retirados os investimentos necessários a implementar essas novas tecnologias, que não podem ser repassados aos produtos. Para resolver o problema, tenta-se estabelecer um valor de troca para a natureza, criando um ponto de partida comum para a produção — coisa incomum no capitalismo. Está aí, portanto, o grande dilema da economia do fim do milênio: ou estes (e outros) custos são generalizados para nivelar as taxas de lucro, ou caminhamos em direção à barbárie. A julgar pelos ventos do neoliberalismo que sopra dos países desenvolvidos em direção ao Terceiro Mundo, onde estão os grandes estoques de riquezas naturais do planeta, o caminho da humanidade já está traçado porque o fortalecimento do interesse público em detrimento do lucro privado e a consideração dos direitos e necessidades das gerações futuras não cabem no receituário neoliberal.
32. Comecei falando do temor do homem diante do poder da natureza e termino falando do temor da humanidade diante do poder dos homens. Landes, no final de seu livro, afirma que o homem vive de uma eterna esperança porque, afinal, este era o último item da caixa de Pandora. Talvez. A verdade é que a dor, a doença, o sofrimento que a fúria de Zeus fez desabar sobre a humanidade, permanecem. E a esperança, que não saiu da caixa, transformou-se num dom virtual, que alimenta permanentemente a ilusão de progresso da humanidade. Porém, como os deuses são sábios e conhecem a leviandade de seus filhos, reservaram para alguns um papel especial, o de conservar registros vivos da pujante riqueza natureza, na Terra devastada pelos homens. E as unidades de conservação serão, talvez, o último refúgio dos deuses.
* Jornalista, membro do Fórum Verde Pró-Conservação da Natureza no Paraná/SPVS, Teresa Urban escreveu este texto em 1997. Ela faleceu em 26 de março de 2013, aos 67 anos de idade.
Ilustração: Robson Vilalba e Foto: João Urban
Referências Bibliográficas
(1) LANDES, Davids. Prometeu Desacorrentado. 1° Edição. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 1994.
(2) JACOB, François. A Lógica da Vida. 1º Edição. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1983.
(3) CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. lº Edição. São Paulo : Editora Cultrix, 1996.
(4) MORIN, Edgar. O Paradigma Perdido. 1° Edição. Lisboa : Publicações Europa América , 1989.
(5) EMERSON, Tony. La biosfera, el hombre y la contaminación. In: BROWN, Michael Barratt; EMERSON, Tony; STONEMAN, Colin. Recursos y medio ambiente: una perspectiva socialista. Barcełona : Editorial Gustavo Gilli S/A., 1978. p.74- 81.
(6) GEORGESCO-ROEGEN, Nicholas. In: BOSQUET, Michel. Ecologia y Libertad. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S/A, (1980?). p.11-15.
(7) BOSQUET, Michel. Ecologia y Libertad. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S/A, (1980?).
(8) PÁDUA, Maria Teresa Jorge. Entrevista concedida a Teresa Urban. Brasília, 1997.
(9) COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum. 1* Edição. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1991.
(10) MARX, Karl. O Capital. Vol. I. 3′ Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S/A. Rio de Janeiro 1975.
(11) CÂMARA, Ibsen de Gusmão. Entrevista concedida a Teresa Urban. Rio de Janeiro, 1997.
(12) MAGNANINI, Alceo. Entrevista concedida a Teresa Urban. Rio de Janeiro, 1997.
Adorei! Tratou os assuntos com bastante coerência e
clareza!