Mais de mil torres de energia elétrica que atravessariam áreas naturais de 27 cidades paranaenses, de um empreendimento capaz de ter, aproximadamente, quinhentos quilômetros de novas linhas de transmissão, poderão ser instaladas na região dos Campos Gerais, no centro-leste do Paraná.
Soma-se a isso um processo de concessão marcado pela falta de transparência e que, se for adiante, resultará em um impacto ambiental irreversível e altamente danoso. A instalação dessas linhas de transmissão elétrica alterará para sempre a paisagem e o meio ambiente de diversas localidades, em especial a da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana.
As linhas, que podem ser implantadas pela multinacional francesa Engie e fazem parte do projeto incoerentemente batizado de “Gralha Azul”, segundo a própria proposta, passariam por mais de duas mil propriedades rurais. Um dos trechos vai de Ponta Grossa, nos Campos Gerais, até Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba, e passa exatamente em cima da Escarpa Devoniana – uma área protegida por lei, rica em tesouros arqueológicos, fauna e flora. Somente nesse trecho está prevista, segundo Estudo de Impacto Ambiental realizado pela própria empresa, a instalação de 398 novas torres. O custo do projeto está estimado em mais de R$ 2 bilhões, sendo R$ 1,4 bilhão com recursos de um banco público, o BNDES.
No outro trecho do projeto Gralha Azul, que vai de Ivaiporã à Ponta Grossa, a Engie estima instalar outras 671 torres. Somando, seriam implantadas 1.069 novas torres, dispostas a cerca de 500 metros uma da outra, o que impactaria, por exemplo, toda a paisagem, a fauna, a flora, e o solo da região.
Sem acesso aos documentos
As licenças ambientais do empreendimento foram emitidas pelo antigo Instituto Ambiental do Paraná (IAP), atual Instituto Água e Terra (IAT), em outubro do ano passado e em fevereiro deste ano. No entanto, todas essas fases aconteceram sem que a sociedade civil tivesse acesso ao licenciamento completo, que, por sua vez, é um documento público. Sem ter acesso ao documento na íntegra, entidades e organizações ambientais não conseguem ter a dimensão real do projeto e de seus impactos. Além disso, a condição impossibilita qualquer estudo e análise mais completa sobre o tema e impõe, certamente, uma ação legal que vise questionar a instalação das linhas.
Sem falar que a ausência do documento completo fere a legislação e os princípios de transparência da gestão pública. O Estudo de Impactos Ambientais (EIA), elaborado pela própria Engie, indica 22 pontos de impactos provocados pelo empreendimento, sendo que somente 4 são considerados positivos, conforme a versão compactada do estudo, que pode ser acessada no link RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL
Entidades e agentes públicos já protocolaram pedidos para ter acesso ao licenciamento completo, como o Observatório de Justiça e Conservação (OJC), o Instituto Purunã e o deputado estadual Goura. “Isso é um desrespeito à sociedade. É imprescindível que os documentos públicos sejam disponibilizados para a população consultar e questionar. Esse é um dos princípios da democracia”, ressalta o diretor-executivo do Observatório de Justiça e Conservação, Giem Guimarães.
Cópias solicitadas
O Observatório precisou oficiar os órgãos para buscar documentos que atestem ou não a anuência sobre a concessão das linhas que serão implantadas pela Engie, uma vez que o processo de licenciamento – que é público pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente – não foi disponibilizado em sua íntegra pelo IAT.
Foram encaminhados ofícios ao IAT, baseados na Lei de Acesso à Informação, solicitando a cópia integral do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) referente aos processos que dizem respeito às linhas de transmissão da Engie, além da cópia na íntegra do processo de licenciamento ambiental referente ao empreendimento. O jurídico do Observatório solicitou, ainda, a cópia integral das atas das audiências públicas realizadas e uma cópia do plano ambiental da empresa. Contudo, o pedido realizado pelo OJC foi arquivado pelo órgão estadual.
“Foram derrubadas araucárias centenárias, em pleno período de produção de pinhão, para a construção de uma torre para passar energia de alta-tensão. Independentemente de liberação e de indenização, quem paga a verdadeira conta sempre é a natureza.
O deputado estadual Goura, ligado às causas ambientais, solicitou os mesmos documentos para a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Turismo e para o IAT, que adiou o prazo e ainda não respondeu. O Instituto Purunã, que atua no desenvolvimento do turismo sustentável em São Luiz do Purunã, também encaminhou ofício ao IAT pedindo a íntegra dos documentos.
O Observatório de Justiça e Conservação ainda encaminhou representação ao Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente do Ministério Público de Ponta Grossa e ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça (CAOPS) do Ministério Público do Paraná (MPPR). Ainda não foram obtidas respostas. O OJC realizou também uma representação ao Ministério Público Federal, apontando a derrubada recente de araucárias pela equipe da Engie nas proximidades de Campo Largo. O corte das árvores é proibido e a ação, sem autorização, é considerada um crime ambiental. “Foram derrubadas araucárias centenárias, em pleno período de produção de pinhão, para a construção de uma torre para passar energia de alta-tensão. Independentemente de liberação e de indenização, quem paga a verdadeira conta sempre é a natureza”, lamentou Leandro Schepiura, produtor local com certificação orgânica que teve diversas árvores frutíferas derrubadas em sua plantação devido às obras da Engie. Ainda não se sabe exatamente quantas araucárias foram derrubadas pela empresa, mas testemunhas da região chegaram a afirmar que podem ter sido em torno de 90. O próprio governo estadual aponta que o corte de pinheiro isolado no meio da floresta não é permitido e, portanto, não pode ser autorizado. Pela Portaria n. 46, de 2015, do antigo Instituto Ambiental do Paraná, é “terminantemente proibido o abate de pinheiros adultos (Araucaria angustifolia), portadores de pinhas, na época de queda de sementes, ou seja, nos meses de abril, maio e junho”. O que a Engie fez na região, portanto, fere totalmente a legislação estadual.
Falta de transparência compromete concessão de licença, diz especialista
O professor do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Gilson Burigo Guimarães, doutor em Petrologia, critica a falta de transparência de todo o processo que autorizou a concessão da licença de instalação das linhas de transmissão elétrica pela Engie na região dos Campos Gerais. “Isso que está acontecendo é inadmissível. E, inclusive, compromete de forma irremediável qualquer concessão de licenças. Infelizmente, essa tem sido uma prática recorrente quando grandes projetos de infraestrutura, sejam de âmbito federal ou estadual, pretendem se instalar em áreas questionáveis”, afirma. Guimarães, que é membro do Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (GUPE) da UEPG, e membro titular do Conselho Gestor da APA da Escarpa Devoniana, afirma que, para ter a real dimensão dos impactos sobre a região da Escarpa Devoniana e as paisagens dos Campos Gerais afetados pelo empreendimento, é necessário ter acesso à documentação completa, que deveria já ter sido apresentada pela empresa.
“O tópico relacionado ao patrimônio espeleológico no EIA/RIMA [Estudo de Impacto Ambiental] é sofrível e está totalmente em desacordo com a legislação específica, sendo suficiente para rejeição do referido estudo. Não devemos esquecer que estamos diante de uma das maiores preciosidades do patrimônio natural e cultural do Paraná, incluindo trechos tombados pelo Estado. Isso deveria acionar um sinal de máximo alerta à sociedade”, ressalta o professor e pesquisador.
Identidade regional
O professor da UEPG explica, ainda, que uma paisagem única, como a que permeia a região da Escarpa Devoniana, constrói identidade regional e sustenta empreendimentos turísticos. “Aqui temos alguns dos últimos remanescentes da paisagem de Campos Naturais do Segundo Planalto Paranaense, com uma série de serviços ambientais proporcionados pelos solos especiais aqui encontrados, da retenção de carbono à regulação hídrica em áreas de nascentes. No local há um riquíssimo conjunto de cavernas em arenitos, com fauna especializada ao contexto”, recorda. Na região também são encontrados os melhores registros de ambientes marinhos com mais de 400 milhões de anos, incluindo pistas fósseis nos afloramentos rochosos próximos à Escarpa.
Ofício pede respostas ao Ibama
São dois processos registrados no IAT sobre a implantação das linhas de transmissão da Engie. Um dos licenciamentos compreende a implantação da linha de transmissão entre Ivaiporã e Ponta Grossa e o outro, de Ponta Grossa à Bateias, na região de Campo Largo. Todos esses trâmites recaem sobre um mesmo empreendimento: a instalação das linhas de energia da Engie. Esse fato gera dúvidas sobre a legalidade da prática. Diante da situação, o Observatório de Justiça e Conservação (OJC) também pediu respostas ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) sobre o assunto. No documento, o Observatório requereu informações a respeito da necessidade e da existência de eventual anuência por parte do Ibama no processo, bem como a fundamentação para o fracionamento do empreendimento em dois processos distintos.
Outros ofícios
O OJC ainda encaminhou ofícios a outros órgãos para solicitar demais informações a respeito da linha das transmissões na região da Escarpa Devoniana. Um dos documentos foi remetido à Fundação Palmares e outro foi direcionado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Confira todos os pontos negativos da instalação das linhas de transmissão na Escarpa Devoniana, numa escala de 0 a 100% de impacto. A maioria dos itens foi considerada como de “médio” e “baixo” impacto, utilizando, obviamente, uma escala questionável:
Quem é a Engie?
A Engie é uma multinacional que está presente no Brasil há mais de 20 anos. Até 2008, a empresa era denominada GDF SUEZ. Responsável pela construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia, a Engie foi indicada em 2010 para o Public Eye Awards, um “antiprêmio” atribuído todos os anos no Fórum de Davos, na Suíça, à empresa ou organização mais irresponsável social e ambientalmente em todo o mundo. A empresa foi acusada por organizações ambientais de violar as normas de proteção ambiental e de ignorar os direitos humanos das populações indígenas, ameaçadas pela construção da hidrelétrica. Em 2012, a Engie retirou US$ 1 bilhão de uma usina australiana antes do imposto sobre o carbono vigorar na Austrália. A empresa francesa transferiu esse montante em dividendos da Austrália de volta às empresas controladoras no Reino Unido. O esquema recebeu o nome de Projeto Salmão – uma referência à capacidade que esse peixe tem de nadar contra a corrente, exatamente como esses lucros estavam prestes a fazer. Detalhes intrincados dessas transações surgiram no Paradise Papers, em 2017, com o vazamento de 13,4 milhões de documentos para o jornal alemão Süddeutsche Zeitung e com a investigação feita pela equipe Four Corners da ABC em parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. No ano de 2015, a agência de notícias Reuters divulgou a abertura de uma investigação para apurar possíveis violações das leis anticorrupção dos EUA e do Brasil envolvendo a Eletrobras e a construção da usina de Jirau, de responsabilidade da empresa francesa Engie.
Bens tombados na região por onde passariam as linhas de transmissão:
Balsa Nova:
- Capela Nossa Senhora da Conceição;
- Iconofósseis Devonianos de São Luiz do Purunã;
- Ponte do Rio dos Papagaios.
Campo Largo:
- Antigo Engenho de Mate da Rondinha;
- Arquibancada de Madeira no Estádio do Ypiranga Football Club;
- Capela Nossa Senhora das Pedras ou das Neves;
- Casa Sede da Antiga Fazenda Cancela;
- Imóvel em Madeira e Alvenaria situado a Rua Max Wolff;
- Ponte do Rio dos Papagaios;
- Prédio da Antiga Coletoria;
- Solar Conselheiro Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá;
- Solar Mandaçaia.
Teixeira Soares:
- Igreja Imaculada Conceição.
Ponta Grossa:
- Antigo edifício do fórum da comarca de Ponta Grossa;
- Antigo Hospital 26 de Outubro;
- Capela Santa Bárbara do Pitangui;
- Colégio Estadual Regente Feijó;
- Edifício situado à Praça Marechal Floriano;
- Estações de passageiros da estrada de ferro de Ponta Grossa;
- Parque Vila Velha, Furnas e Lagoa Dourada;
- Vila Hilda;
- Ponte do Rio dos Papagaios;
- Prédio da Antiga Coletoria;
- Solar Conselheiro Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá;
- Solar Mandaçaia.
Palmeira:
• Sítio geológico – Estrias Glaciais de Witmarsum.
Sítios arqueológicos:
Em referência ao Patrimônio Arqueológico, o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do Iphan demonstra 14 sítios arqueológicos em Campo Largo, 22 em Palmeira e 8 Ponta Grossa.
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